"Allons enfants..."

Muito se discutiu sobre as eleições francesas e é questionável a essa altura se mais uma reflexão pode aportar elementos novos ao debate que tomou conta do mundo desde o começo de 2017, particularmente a partir do momento em que o candidato da direit...
"Allons enfants..."

Muito se discutiu sobre as eleições francesas e é questionável a essa altura se mais uma reflexão pode aportar elementos novos ao debate que tomou conta do mundo desde o começo de 2017, particularmente a partir do momento em que o candidato da direita branda, o favorito François Fillon, despencou nas pesquisas no bojo de escândalos que mais pareciam ambientados em Brasília e não em Paris. Seja como for, sabemos que elucubrações antecipatórias nada mais são muitas vezes do que formas de lidarmos com a ansiedade natural que nos acomete diante da incerteza, especialmente quando se trata de um embate onde o que está em jogo é o futuro do condomínio europeu. Esse detalhe por si só confere uma dimensão excepcional ao evento, ademais de sinalizar o ocaso do que se chama na França de Quinta República. O que inferir, portanto, da voz das urnas? 

Ora, para darmos ao quadro a moldura cabível, impõe-se ressaltar que François Hollande foi o primeiro presidente em meio século a não se candidatar à reeleição. Já no começo de seu quinquênio, parece ter ficado evidente tanto para franceses quanto para observadores políticos que se tratava de um homem certamente simpático e afável, mas carente da estatura e do estadismo que se espera do ocupante da posição. Embora tenha se comportado com muita dignidade por ocasião dos traumáticos eventos que castigaram a França no bojo do terror, isso anda não bastava. Esperava-se do presidente da França algo mais do que a serenidade ao conduzir elaboradas e dolorosas cerimônias fúnebres. Das hostes de Hollande, despontaram por conta e risco dois homens de estatura política apenas mediana, porém intuitivos o bastante para saber que lhe poderiam postular a cadeira.

O primeiro foi Emanuel Macron, hoje franco favorito para o turno do domingo da próxima semana. O segundo foi Manuel Valls que não conseguiu a preferência do Partido Socialista que levou ao púlpito um Benoît Hamon de pés nas nuvens, agraciado com apenas 6% dos votos no primeiro turno, assinalando o ocaso de um partido que sempre fora considerado de chegada. Que a "débâcle" da esquerda francesa é patente, isso está fora de qualquer dúvida. Essas agremiações algo ingênuas em seu romantismo encharcado de "vontade política" – eufemismo para voluntarismo – golpearam o país tenazmente com benefícios em cascata, redução de horas de trabalho e, consequentemente, baixa produtividade. Numa vertente próxima, ainda que bafejada por outros ventos, devemos nos ater ao que pode ter representado a espetacular subida de Mélenchon na reta final. 

Sendo a personalidade mais singular da rodada eleitoral, dizer que o franco-marroquino Mélenchon é de esquerda, na medida em que isso ainda exista, é mero reducionismo. Ele integra, na minha visão, uma corrente próxima à de Marina Silva do Brasil, a chamada porra-louquice beleza, com a diferença de que se trata de um homem culto e charmoso, carismático dentro da acepção original da palavra. Não é um mero cunhador de neologismos como a ex-senadora do Acre. A irmanar ambos, contudo, ressaltemos a orfandade em que deixam seu eleitorado no segundo turno, fruto de uma visão narcisista. Isso, no entanto, não pode nos fazer esquecer que Mélenchon propugnava a saída da Europa, opção bastante próxima à de Le Pen. Ora, considerar que ambos tiveram 40% dos votos, vale dizer que uma parte importante do eleitorado poderia se inclinar ao Frexit.

Efetivamente, a Europa e o euro são questões centrais ao debate. Se a insularidade britânica e seu determinismo geográfico levaram o Reino Unido ao despautério do Brexit, a defecção da França dinamitaria uma viga mestra da maior criação política do homem em tempos modernos – um verdadeiro antídoto contra a guerra. Nesse contexto, Marine Le Pen vem com a mesma proposta em seu embornal, apesar de tentar suavizar as cores do isolacionismo romântico, nem por isso menos raivoso. Se, contudo, importante numa eleição é sair maior do que se entrou, não resta dúvida de que ela conseguiu muito. Nesse contexto, apenas uma minoria dos eleitores de Fiillon – e do postulante Juppé que não chegou ao primeiro turno – votarão nela, o que fortifica a candidatura robusta do jovem Macron, o probabilíssimo próximo presidente. 

A bem da verdade, o jogo da governabilidade se decidirá nas legislativas, que lá acontecem em dois turnos. Para formar um governo, a França viverá a experiência da coabitação: presidência de uma cor, governo de outro. Lá isso é possível. Nos tempos que vivemos, toda convergência em busca do equilíbrio da agenda mínima é desejável. E Macron precisará de uma base que o tire do isolamento de "outsider". Num momento em que as consultas ao Google sobre Terceira Guerra Mundial dispararam, convém manter a Europa una e sólida. Para encerrar, convém atentar para as ironias da política: os eleitores que Le Pen pode dar como certos são, em grande parte, egressos do velho Partido Comunista que, esfarelado, reinava soberano no leste. Eis uma direita bizarra que se integra a um sindicalismo sequioso em trabalhar 20 horas por semana e viver como se trabalhasse 50. 

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Sábado, 14 Dezembro 2024

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