O imenso legado de Helmut Kohl

Antes da inverossímil queda do Muro de Berlim, uma visita à antiga República Democrática Alemã era uma experiência que marcava. Quem saísse de Berlim Ocidental e se aventurasse ao outro lado, traria invariavelmente a impressão de que retroagira no te...
O imenso legado de Helmut Kohl

Antes da inverossímil queda do Muro de Berlim, uma visita à antiga República Democrática Alemã era uma experiência que marcava. Quem saísse de Berlim Ocidental e se aventurasse ao outro lado, traria invariavelmente a impressão de que retroagira no tempo em muitas décadas. Mais do que isso, voltaria com o sentimento de que fazia face a um primado de regras inquebrantáveis posto que o avalista da ordem da Guerra Fria era Moscou, o que conferia uma ilusória sensação de solidez àquele arranjo que cindia um povo. O surpreendente é que ninguém – nem político nem intelectual – adiantara até então a hipótese de que o Muro em questão um dia seria parte de um passado distante e, sobretudo, de que não tardaria para que isso acontecesse. Como conclusão preliminar, podemos perguntar: quem disse que estadistas e professores encerram as verdades do mundo? Helmut Kohl foi a prova bem viva de que política se faz com sensibilidade e não só com o crânio.  

Sem o carisma, o brilho e a solidez de seus antecessores – particularmente do trio formado por Konrad Adenauer, Willi Brandt ou Helmut Schmidt –, o corpulento Kohl e seu sotaque de província vieram ao mundo para atestar que nem tudo que é ouro tem de reluzir. Tendo perdido um irmão querido durante a Segunda Guerra, engajou-se cedo na militância política e conseguiu se mostrar um articulador de rara habilidade. Foi na tessitura de relações interpessoais interna e externamente que consolidaria as bases da chefia de um governo que durou mais de década e meia, a segunda mais longeva desde Otto von Bismarck. Quem conhecia as fronteiras silenciosas de Hof, na Baviera, com Plauen e Zwickau do outro lado, lá onde se encontravam dois países do leste e a República Federal da Alemanha, há de ter tirado o chapéu para aquele homem aparentemente desambicioso, falecido na manhã de hoje ao cabo de uma longa e profícua vida. 

Se Margareth Thatcher foi a única grande líder europeia a olhá-lo de soslaio, fiel à sua máxima de que gostava tanto da Alemanha que preferia continuar a ter duas, o mesmo não se pode dizer de Mikhail Gorbachev que encontrou no alemão um parceiro à altura para dar cabo de um sistema que agonizava. Não fora uma pragmática "Ostpolitik" – de que ele não fora sequer o criador já que assentada desde Brandt –, o colapso da URSS poderia ter tomado a dimensão de catástrofe humana insanável, tanto dentro quanto fora das fronteiras da Rússia e do império. Da mesma forma, foi em Kohl que Bush reconheceu o aliado de que precisavam os Estados Unidos para consolidar uma hegemonia ocidental, ao constatar que estava diante de um dos maiores expoentes de liderança genuinamente europeia, quando há muito a Alemanha só suscitava preocupações e reticências em Washington. Liderança inverossímil, mas efetiva. Sem ter muito de carismática, foi prova viva de que política é sobretudo "praxis" e jeito.  

O maior momento de Kohl, contudo, talvez tenha sido o pontificado ao lado de François Mitterrand, presidente da França. Superando velhas rusgas que dividiam as duas potências separadas pelo rio Reno e muito mais, ambos afiançaram o Tratado de Maastricht, o que referendou a criação da União Europeia, a pedra fundamental para o advento do Euro e do Espaço Schengen, garantindo pelas vias da união monetária e abertura sistemática de fronteiras, o que o alemão via como o passo mais transcendente rumo a uma paz duradoura nessa ponta do continente eurasiano. Foi Helmut Kohl quem discursou em Dresden diante de um atônito Putin – então acantonado lá como funcionário da KGB –, levando a mensagem de que estava refundado o "Vaterland". De há muito afastado da política, e maculado no final por pequenos escândalos que respingaram sobre doações de campanha, a História fará justiça ao grande homem. E a Europa rende homenagem a quem sonhou grande e enxergou longe.

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Domingo, 15 Dezembro 2024

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