Jogos, dinheiro, drogas e Wall Street
Afinal, a Bitcoin seria um esquema de pirâmide high-tech ou uma peça importante de financiamento no futuro? O valor da moeda virtual subiu para US$ 1.200 antes de cair para cerca de US$ 100 em 2014 e hoje está cotada em torno de US$ 300 e US$ 500 depois de uma recuperação recente. Esse quadro acrescentou à viabilidade da moeda um componente negativo de volatilidade. Enquanto muitos observadores continuam a coçar a cabeça em dúvida sobre o valor definitivo do conceito de Bitcoin, outros investem na ideia de que ela mudará completamente, em breve, o funcionamento das finanças.
A Knowledge@Wharton conversou recentemente com Nathaniel Popper, repórter do New York Times especializado em Bitcoin, para saber mais a respeito do surgimento dessa moeda digital e qual seu possível futuro. Popper explica como o Vale do Silício e Wall Street travam hoje uma luta em torno do futuro da tecnologia da Bitcoin: o primeiro acha que com ela conseguirá tomar o poder financeiro do último. O novo livro de Popper, “Ouro digital: a Bitcoin e a história não contada dos desajustados e dos milionários que estão tentando reinventar o dinheiro” [Digital Gold: Bitcoin and the Inside Story of the Misfits and Millionaires Trying to Reinvent Money], baseia-se em mais de 300 entrevistas feitas no mundo todo, inclusive com Tyler e Cameron Winklevoss e o esquivo criador da Bitcoin, Satoshi Nakamoto.
O que é exatamente a Bitcoin?
A Bitcoin é, basicamente, uma ficha digital [token] que circula e pode ser negociada. Contudo, é uma ficha digital escassa, já que foram criadas até hoje apenas 21 milhões de Bitcoins. Mas isso é só a parte de cima do negócio. Por baixo disso há um novo tipo de rede financeira. Qualquer um pode baixar e explorar o software de código aberto que define a maneira como as fichas são criadas e como se movimentam. A partir do momento que você começa a mexer nessa rede, você se torna parte dos usuários dela. Você pode obter novas Bitcoins à medida que elas forem sendo criadas. É uma nova forma de rede descentralizada.
Podem-se empregar muitas metáforas para descrever a Bitcoin. Por exemplo, ela é um tipo de e-mail para dinheiro. É muito difícil enviar valores por meios eletrônicos, porque o que impediria alguém de copiar e colar a cédula de dólar enviada por e-mail e usá-la em seguida em outro? Mas a Bitcoin permite que isso aconteça. Ela é um pouco parecida também com a Wikipédia, onde muita gente trabalha junto para manter uma rede que todos podem usar. É uma espécie de Internet do dinheiro. Todas as Bitcoins em circulação no mundo valem hoje em torno de US$ 5 bilhões. Toda empresa de capital de risco no Vale do Silício investe em Bitcoin ou em tecnologia de blockchain.
Uma coisa que me deixou fascinado em seu livro é o cabo de guerra que parece estar sendo travado entre o Vale do Silício e Wall Street. Você poderia explicar do que se trata essa briga e quais suas implicações?
Conto no livro a história de esforços tecnológicos anteriores para criar dinheiro digital e abalar Wall Street. Uma dessas histórias tem a ver com a comunidade dos hackers. Os cyberpunks dos anos 90 queriam criar uma moeda digital para que impedir o governo de rastrear as transações feitas com cartão de crédito. Basicamente, os Edward Snowdens do mundo queriam levar para o mundo digital a natureza anônima do dinheiro. As experiências da época resultaram em coisas como o DigiCash, nos anos 1990, que acabou não dando certo. Ao mesmo tempo, havia o Paypal que, originalmente, tinha pretensões parecidas com as da Bitcoin. O Paypal queria criar um sistema financeiro alheio ao governo. Assim, por exemplo, quem estivesse na Argentina poderia usar o Paypal para transferir seu dinheiro ? quando o peso argentino estivesse em desvantagem ? para outra economia cuja moeda estivesse com melhor desempenho.
A Paypal não pôde concretizar a ambição que tinha. Hoje é uma empresa grande e bem-sucedida. Contudo, seus fundadores ? Peter Thiel e Max Levchin ? às vezes se referem a ela como uma coisa que não deu certo. Hoje em dia a Paypal é mais uma plataforma de pagamento que funciona do mesmo jeito que as plataformas da Visa e da American Express. Contudo, parte da história da Paypal tinha a ver com sua ambição de contornar a indústria financeira existente. O Vale do Silício reconhece que não foi capaz de mexer realmente com o setor de finanças. Ele conseguiu abalar muitas outras indústrias, inclusive de mídia e as editoras. No entanto, o setor de finanças manteve sua condição de círculo fechado sem interrupção de funcionamento. Por exemplo, só os bancos guardavam e guardam dinheiro, e só eles fazem transações financeiras. A Paypal mexeu nisso, mas na verdade a empresa não passa de uma intermediária entre os bancos. Portanto, Wall Street continua ser o centro de poder e de influência nos Estados Unidos. Mas esse pessoal da Paypal, porém, aos poucos foi conquistado pela Bitcoin. Gente como Peter Theil e Marc Andreessen hoje dizem: “Essa é a nossa chance de abalar Wall Street e entrar no negócio de pagamentos e depósitos.”
O Vale do Silício hoje desafia Wall Street como nunca antes. Há um sentimento de confiança e de ousadia no Vale do Silício atualmente. Há gente pensando: “Chegou a nossa hora. Chegou o momento de desafiar o centro do poder dos EUA e nos tornarmos esse poder.” Esse desafio não se resume a Bitcoin. Contudo, essa é uma maneira interessante de entender de que maneira o Vale do Silício quer desafiar Wall Street: criando uma rede descentralizada, como a Internet, e com isso desafiar o poderio centralizador da indústria financeira.
Como Wall Street pretende contra-atacar?
No ano passado, a indústria financeira de Wall Street foi a que mais se interessou por essa tecnologia. Não há um pingo de ironia no fato de que a Bitcoin foi criada com o objetivo de desestruturar e contornar Wall Street e os bancos centrais. Contudo, as duas partes que hoje estão mais interessadas em usar a Bitcoin são os bancos centrais e Wall Street. Há reuniões semanais atualmente sobre a plataforma blockchain para Bitcoin patrocinadas por grupos como Citigroup e Santander. Os participantes são pessoas que atuam no Banco da Inglaterra e no Federal Reserve.
Os bancos estão tentando tirar proveito dessa tecnologia, mas não como se poderia imaginar. Por exemplo, eles querem criar redes próprias de pagamentos para fazer transferências instantâneas. Atualmente, a rede de câmaras de compensação automáticas dominantes (ACH, na sigla em inglês) levam de dois a três dias para efetuar uma transferência bancária simples. Os bancos querem que isso aconteça mais depressa e acreditam que o sistema de blockchain possa ajudá-los a fazer transações instantâneas, o que agradaria o consumidor. Eles também falam em usar essa tecnologia para realizar transações de maior porte, como as transações com ações, títulos e empréstimos. A Nasdaq, bolsa de valores digital, revelou recentemente a existência de um sistema de blockchain para a realização de alguns negócios. A instituição vai começar a negociar ações de empresas privadas em sistema de blockchain próprio.Para entender o que é o blockchain, temos de entender o que é a Bitcoin, que é um tipo de moeda que existe e é negociada em uma rede de computadores. Essas redes mantêm um livro contábil de transações que é mantido de forma coletiva no mundo todo. Esse grande livro contábil é o blockchain.
Portanto, as pessoas hoje em dia raciocinam da seguinte forma: tudo o que é mantido em um banco de dados ou em um livro contábil centralizado pode ser afetado pelo conceito de blockchain. Por exemplo, antes as pessoas tinham de recorrer a uma empresa de hipotecas para saber se alguém tinha o título de uma determinada hipoteca. No entanto, melhor seria consultar um banco de dados descentralizado e confiável em poder de todos. Isso permitiria encontrar a informação necessária sobre a hipoteca. É claro que isso é coisa para o futuro. O começo de tudo é o dinheiro digital. A partir disso, porém, começamos a discutir uma nova maneira de registrar propriedades em qualquer parte do mundo. Com isso dá para você perceber por que fiquei interessado no assunto e por que as pessoas ficam tão empolgadas com ele. Quando você começa a pensar nisso e imagina o que pode vir a se tornar, não há como não ficar entusiasmado.
Enquanto isso, a Bitcoin segue em frente e continua a ser negociada na rede. O montante disponível continua a crescer rumo aos 21 milhões de Bitcoins. Contudo, a utilização de Bitcoins para compras online não teve um resultado tão bom quanto se esperava. Houve ocasiões em que os indivíduos trataram a moeda como se fosse uma corrida do ouro e investiram nela, e aí o preço subiu e depois despencou. Inúmeras pessoas perderam muito dinheiro com isso. Também acho que parte do raciocínio econômico por trás da Bitcoin está errado. O nebuloso criador da moeda digital ? Satoshi Nakamoto ? escreveu vários estudos sobre o que esperava que acontecesse, mas as coisas não saíram exatamente conforme ele esperava. Portanto, não se trata de nenhum triunfo maravilhoso. Houve muitas falhas. No entanto, é uma experiência que se pode observar em ação no mundo real.
Fale-nos a respeito da confiança nesse sistema.
A confiança é um tema fundamental da perspectiva do consumidor. Contudo, quer se trate da Bitcoin ou de outra coisa qualquer, o fato é que o dinheiro digital chegou para ficar. Não é significativo atualmente o número de pessoas que já fez alguma aquisição com a Bitcoin, mas muita gente fez compras on-line com o cartão de crédito. Isso é dinheiro digital. As pessoas confiam no sistema de cartão de crédito e confiam que receberão aquilo pelo que pagaram. A Bitcoin é uma variação de um sistema de pagamento que funciona conforme o interesse pessoal do consumidor, por isso é que vai dar certo.
Ainda com relação à confiança, é importante observar que a Bitcoin, que não valia nada, hoje vale alguma coisa. Como foi que ela criou esse efeito de rede e conquistou usuários? Ela o fez, originalmente, através de uma coisa chamada Silk Road, um antigo site para venda de drogas. A Silk Road foi, na verdade, o primeiro lugar onde se usou a Bitcoin mostrando que a ideia funcionava. Antes do aparecimento da Silk Road, em 2011, a Bitcoin não valia praticamente nada. Depois, nos primeiros quatro meses de funcionamento da Silk Road, o valor da Bitcoin passou de 50 cents para US$ 30 cada. Ela permitiu que se fizesse uma coisa antes impossível: por exemplo, enviar dinheiro para Amsterdã para compra de heroína. As transações sempre se completaram e não houve necessidade de nenhum intermediário. Para alguns, trata-se de uma página negra na história da Bitcoin; outros, porém, pensaram: “Caramba, alguém está mandando US$ 100 para Amsterdã para uma pessoa desconhecida e o dinheiro sempre chega ao destinatário.” Isso é o que há de mais sensacional em relação a Bitcoin: é uma transação que acontece entre duas pessoas não confiáveis. É isso o que a Bitcoin tem a oferecer e que os sistemas existentes não oferecem. Ela funciona para transações ilegais, jogo e drogas.
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