Ciclos econômicos, crise fiscal e o Rio Grande do Sul
Se fosse possível resumir em uma única palavra o comportamento da economia mundial nos últimos dois séculos, esta seria “crescimento”. De acordo com o historiador econômico Angus Maddison, enquanto o PIB per capita mundial em valores de 1990 em 1820 era de cerca de US$ 712 milhões, em 2010 passou a ser de US$ 7,8 bilhões: uma impressionante multiplicação por um fator de 11 em menos de dois séculos. A longa trajetória de lá para cá foi, contudo, longe de ser linear. Períodos de alternância entre crescimento vigoroso, brando, estagnação ou mesmo queda continuada da atividade – as conhecidas recessões – marcaram a história econômica dos mais diversos países. Estas diferentes fases, que caracterizam o comportamento das economias modernas ao longo do tempo, são conhecidas como ciclos econômicos ou, mais comumente, como ciclos de negócios.
Oscilações deste tipo podem ser observadas em uma gama de indicadores macroeconômicos, como produção, vendas, emprego, rendimento, expectativas, confiança, etc., alguns dos quais se movimentam antes de outros. Ademais, estes ciclos irrompem não apenas nas economias nacionais, mas se manifestam também nestes indicadores das mais diversas sub-regiões dentro de um mesmo país. Os estados, por exemplo, estão sujeitos a recessões, algumas vezes compartilhando causas comuns com a economia nacional, outras como fruto de condições muito particulares da própria região analisada.
A recessão brasileira de 2014-2016 chamou atenção por se caracterizar como a mais profunda e duradoura no país desde a década de 1980, com uma queda acumulada de PIB de 8,6% em seus 11 trimestres de duração. Este cenário crítico a nível nacional se confirma também quando analisamos as diferentes unidades federativas. O ano de 2015, ponto médio da crise, registrou, pela primeira vez desde o início da série histórica, queda no Produto Interno Bruto (PIB) de todos os estados brasileiros, fato relatado pelo IBGE como inédito. Dentre os estados com piores resultados, encontra-se o Rio Grande do Sul, que apresentou naquele ano queda de 4,6% no PIB em relação a 2014.
O número chama atenção não apenas pela magnitude expressiva, mas porque revela as consequências da fraca atividade econômica sobre o orçamento estadual. E o caso do Rio Grande do Sul é paradigmático, tamanha a magnitude da crise fiscal. Quando a produção e as vendas declinaram em 2015, os recursos tributários também recuaram em 0,65% em termos reais. A arrecadação do principal imposto do estado – o ICMS – apresentou contração de R$ 517 milhões, também em termos reais. Apesar do corte nas despesas, a queda nas receitas resultou em um déficit primário da ordem de R$ 1,9 bilhão. Assim, é notório que a atual crise fiscal pela qual o estado passa é decorrente não apenas dos conhecidos problemas estruturais da economia gaúcha. O orçamento é também vítima do ciclo econômico.
Torna-se, portanto, imperativo para a execução de uma gestão de recursos estratégica e eficiente monitorar o ciclo de negócios do estado, identificando a fase corrente do mesmo, bem como buscando antecipar seus movimentos. Com este objetivo, a Fundação de Economia e Estatística (FEE) desenvolveu o Monitor da Economia Gaúcha (MEG), o qual será apresentado a seguir.
De olho nos ciclos
Embora escassas no Brasil, ferramentas analíticas para inferir sobre os ciclos econômicos – e consequentemente auxiliar na definição de políticas públicas ou em decisões de consumo e investimento – são mais comuns em países desenvolvidos. Uma delas é o Business Cycle Tracer, desenvolvido e mantido pela divisão de estudos de ciclos de negócios do Statistics Netherlands, órgão público holandês equivalente ao IBGE. O termo tracer remete à ideia de “rastrear” os movimentos da economia, permitindo um monitoramento sistemático e em um timing e frequência que permitem diagnosticar com maior precisão o desempenho da economia antes da divulgação dos dados do Produto Interno Bruto - PIB. Outra ferramenta que objetiva consolidar um conjunto de informações esparsas é o Eight different faces of the labor market, ferramenta disponibilizada pelo Federal Reserve of New York, o banco central americano localizado em NY. A partir de um conjunto de indicadores que sintetizam o mercado de trabalho em diversas "faces", tais como nível de emprego, horas trabalhadas e demanda por trabalho, ele busca fornecer um diagnóstico completo daquele segmento. Ambos os sistemas compartilham um mesmo objetivo: aglutinar diferentes informações de natureza socioeconômica, e proporcionar ao usuário uma análise rápida, em uma interface simples, interativa e focada no aspecto visual.A partir dessa experiência internacional com a sistematização de dados e informações conjunturais e seus notórios benefícios para analistas e gestores, alguns pesquisadores da Fundação de Economia e Estatística (FEE) perceberam que havia esta lacuna para o RS. Surgiu, então, a ideia de criar o Monitor da Economia Gaúcha – doravante “MEG” –, uma ferramenta capaz de congregar variáveis conjunturais relevantes sobre a economia gaúcha e facilitar a análise de suas inter-relações e de seus co-movimentos ao longo do tempo. Os pilares de sustentação que nortearam a concepção do MEG são:
- Objetividade;
- Foco no aspecto visual;
- Complementariedade dos recursos disponíveis na ferramenta;
- Representação de múltiplas dimensões da economia gaúcha;
- Categorização de variáveis de acordo com o seu perfil temporal com o ciclo de negócios local.
Consoante com esses cinco pilares, foi definido no âmbito do projeto um conjunto de variáveis mensais que inclui não apenas informações divulgadas pela FEE, mas também pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS), Federação do Comércio de bens e Serviços do Estado do Rio Grande do Sul (Fecomércio-RS), Banco Central do Brasil (Bacen), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Alphaplan Inteligência em Pesquisas, Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), e ZAP Imóveis. Através dessa multiplicidade de fontes de dados e complementariedade das informações, buscou-se apresentar um panorama sobre a situação atual da economia gaúcha, bem como observar aspectos cíclicos importantes, como as heterogeneidades de natureza regional ou setorial. As informações, gratuitas a todos os usuários, estão disponíveis no portal VisualizaFEE.
Na prática, então, como o MEG pode auxiliar na tomada de decisão envolvendo cenários econômicos? Três aspectos principais podem ser destacados. Primeiro, ele apresenta dados de múltiplas fontes em uma só plataforma, poupando tempo de coleta e tratamento dessas informações. Segundo, ele fornece um panorama que auxilia no entendimento sobre o estado atual da economia antes que seja divulgado o PIB trimestral ou anual, o que ocorre com significativa defasagem em relação ao período de competência. Por exemplo, o PIB do 3º trimestre só é divulgado no mês de dezembro daquele ano. Terceiro, ele inclui alguns indicadores cujos movimentos geralmente antecipam as flutuações do PIB – são os chamados indicadores antecedentes da atividade econômica, que são fundamentais para prognosticar cenários econômicos. Para ilustrar esses três aspectos, tomemos a ferramenta denominada “dinâmica macroeconômica” como exemplo [a dinâmica macroeconômica é uma das funcionalidades do MEG. Além dela, outros recursos disponíveis são séries temporais e tabela sintética de variação]. A Figura 1 expõe variáveis que compõem o MEG em dois eixos principais: taxa de variação acumulada em doze meses (crescimento, eixo y) e variação absoluta da taxa de crescimento (aceleração, eixo x).
Figura 1: crescimento e aceleração das variáveis do Monitor da Economia Gaúcha (MEG), novembro de 2013.
Para compreender a figura, vamos explicar brevemente a intuição do gráfico. No primeiro quadrante (cor verde), estão os indicadores cuja taxa de variação em doze meses, no mês de análise (novembro de 2013), está crescendo e acelerando; no segundo (amarelo), estão as variáveis que mostram crescimento, mas que este já mostra desaceleração; no terceiro (vermelho), estão os indicadores que acumulam variação negativa e que estão desacelerando (aprofundando a queda); finalmente, no quarto quadrante (laranja), estão os indicadores cuja taxa de variação está decrescendo, mas acelerando (melhorando). Conjuntamente, os quadrantes representam as transições dos indicadores ao longo do ciclo econômico: antes de entrar em recessão, geralmente a economia mostra sinais de abrandamento do crescimento; ao entrar em recessão, após algum tempo, a queda no nível de atividade passa a ocorrer em ritmo cada vez menor, dando lugar, gradualmente, a uma nova fase cíclica de expansão. Na prática, esse comportamento inerentemente cíclico da economia gaúcha pode ser observado na Figura 2, que elucida o crescimento acumulado em quatro trimestres (%) do PIB trimestral do RS.
Figura 2: Taxa de variação do PIB trimestral do RS, acumulada em quatro trimestres, 2003.IV-2017.II (%).
Tomemos, agora, um exemplo prático. Em novembro de 2013 (Figura 1), observa-se que a maior parte dos indicadores estava no 1º quadrante, indicando crescimento acelerado da economia gaúcha. O PIB, destacado na Figura 2, confirma este movimento cíclico expansionista. No entanto, um olhar mais atento indica que algumas variáveis do MEG já apontavam para uma reversão desse ciclo: a confiança do setor industrial gaúcho (FIERGS) e a intenção de consumo das famílias (Fecomércio-RS), variáveis tipicamente antecedentes, já mostravam desaceleração (3º e 2º quadrantes, respectivamente). Como todos sabemos, o sinal de alerta gerado por essas variáveis acabou se confirmando, meses depois, em uma recessão sem precedentes na economia brasileira e de suas Unidades Federativas.
Analogamente, durante fases recessivas do ciclo econômico, as variáveis constantes do MEG encontram-se geralmente no 3º ou 4º quadrantes. Tomemos a fotografia do mês de maio de 2016 (Figura 3). Naquela data, todos os indicadores acumulavam variação negativa nos últimos doze meses (ou seja, estavam abaixo do eixo x). A maior parte deles – incluindo o PIB – estava desacelerando, o que indica que a queda do nível de atividade estava se aprofundando. Um subconjunto menor dos indicadores mostrava uma tendência de “parar de piorar”: variações acumuladas que, apesar de negativas, mostravam aceleração (4º quadrante). Essas variáveis, todas referentes ao setor industrial, sinalizavam uma saída da recessão relativamente mais rápida desse setor, fenômeno que meses depois acabou se concretizando. Essa heterogeneidade setorial que pode ser inferida a partir do MEG é importante para o acompanhamento e prognóstico de diferentes segmentos da economia gaúcha.
Figura 3: crescimento e aceleração das variáveis do Monitor da Economia Gaúcha (MEG), maio de 2016.
Resumidamente, as variações no crescimento e na aceleração das variáveis constantes do MEG diagnosticam com significativo grau de confiança não apenas como a economia gaúcha está se comportando, mas também quais são seus rumos prováveis no curto prazo. Rastrear esses movimentos cíclicos é tarefa importante para a avaliação de políticas de estímulo à economia e da situação de mercados consumidores, tornando mais eficiente a tomada de decisão no presente.
Fim da recessão, fim da crise fiscal?
A partir das informações constantes do MEG, pode-se responder à seguinte pergunta: a economia gaúcha já saiu da recessão? Em outubro de 2017, o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (CODACE) lançou comunicado informando que a recessão brasileira havia chegado ao fim em dezembro de 2016. Na realidade gaúcha, embora não haja um Comitê específico constituído com o objetivo de estabelecer uma cronologia de expansões e recessões, a análise dos autores deste texto levando em conta os movimentos recentes dos diversos indicadores econômicos locais confirmam que a recessão ficou para trás também no Estado. A datação cíclica baseada no Índice de Atividade Econômica Regional do Banco Central do Brasil (IBCR-RS) sugere que há um vale no nível de atividade da economia gaúcha em nov./2016, o que indicaria o fim da recessão. Comparando-se com a cronologia de recessões brasileiras (Tabela 1), as nossas estimativas indicam que a recessão começou antes no RS (set/13, ante mar/14 no caso brasileiro), e que a duração da recessão aqui foi maior – 40 meses, contra 35 meses do caso brasileiro.
Uma distinção importante que deve ser feita no que tange ao fim da recessão brasileira – e também gaúcha – é que ela não implica fim da crise fiscal. Recessão é um fenômeno econômico de natureza cíclica, que ocorre de tempos em tempos, a partir de causas variadas. A crise fiscal, por outro lado, decorre não apenas da queda temporária nas receitas que acompanha o ciclo econômico, mas também de causas estruturais. Ademais, como o ritmo de recuperação da economia está muito mais lento do que a velocidade com que a economia decresceu durante a recessão, vão ser necessários alguns anos até que o nível de atividade da economia atinja o nível pré-recessão (pico). Esses “anos perdidos” geram uma série de implicações. Do ponto de vista fiscal, por exemplo, a receita tributária é duramente afetada pela atividade econômica deteriorada, como discutido anteriormente, uma vez que é pró-cíclica; isto é, acompanha as flutuações do nível de atividade econômica. E como parte significativa das despesas cresce vegetativamente, as recessões impõem descompassos crescentes entre arrecadação e gasto. Esse desequilíbrio é maior na medida em que a magnitude da queda e a duração do período recessivo são maiores. Em ambos os quesitos, a última recessão brasileira foi devastadora, com fortes consequências para o Rio Grande do Sul, que padece de uma doença fiscal crônica.
Conclusão
O Monitor da Economia Gaúcha (MEG) é uma ferramenta que tem como foco a sistematização de indicadores que, de maneira integrada, permitem uma inferência não apenas do atual estado da economia, mas também dos movimentos cíclicos nos últimos vinte e cinco anos no Rio Grande do Sul. A atualização mensal de todas as funcionalidades do MEG fornece um panorama continuado sobre a evolução da economia do Rio Grande do Sul em cinco aspectos distintos: nível de atividade, mercado de trabalho, indicadores de confiança, inadimplência e crédito, e índices de preços. Tal qual um médico examina um paciente através de múltiplos exames, o MEG busca analisar a economia gaúcha sob esses diversos ângulos, a fim de proporcionar ao usuário condições de estabelecer um diagnóstico preciso.
Com este produto – do nosso conhecimento, pioneiro entre os Estados brasileiros –, a FEE busca preencher uma lacuna existente para analistas, pesquisadores, estudantes, jornalistas da área econômica e demais interessados em entender melhor a conjuntura da economia gaúcha. Reunir indicadores de diversas fontes de dados em uma única ferramenta reduz não apenas o tempo dedicado à coleta e análise dessas informações, mas também melhora a capacidade de visualização e interpretação dos dados. Isto, no fim das contas, é o que pode se traduzir em decisões econômicas melhores para pessoas, empresas e governos.
*Economistas da FEE.
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