Lembranças natalinas
Até meus 10 anos, posso dizer que as festas de Natal eram muito associadas à chegada de Papai Noel, em cuja existência eu fingia acreditar candidamente, mesmo depois que as primeiras evidências já tinham desnudado a crua realidade. Nessa idade, portanto, ia dormir cedo na noite do dia 24, na expectativa de ver o presente se materializar ao lado da cama com os primeiros raios de sol. Foi assim com um lindo posto de gasolina, como eu jamais vira de verdade. Tinha oficina de conserto de carros no andar superior e até um elevadorzinho que os levava para a manutenção. Depois veio o Forte Apache, que eu armava todo dia pela manhã. Nesse mesmo ano, meu irmão ganhou uma taba de índios. Colocávamos os dois em guerra e, na falta de canhoneiras, arremessávamos bolas de gude contra as hostes adversárias. Depois aconteceu um incidente grave. Tendo eu pedido uma bicicleta, ganhei um enorme velocípede que me desagradou de cara. Não fora isso o que eu escrevera na carta. Papai Noel que se preparasse, pois naquele 1968 a cobra iria fumar. Eu seria uma peste de menino ao longo do ano. Meus pais, diante da reação talibã, disseram que o velhinho ligara para se desculpar e jurara que iria trocar o brinquedo infantil por uma bicicleta de verdade. Foi assim que ganhei a Monarck verde com que sonhava, tal e qual aquela da loja Viana Leal, da Rua da Palma. Quanto ao autorama, não chegou nossa vez. Como nossos primos e vizinhos tinham um, podíamos brincar lá e mamãe alegava que ter um trambolho daquele em casa era um suplício porque as crianças logo se abusavam e ficava o trabalho de limpar os trilhos dos carrinhos. Mesmo assim, ganhei um trem elétrico, um par de patins, entre outros, até que os objetos perderam relevância diante das experiências. E, pensando bem, assim é até hoje.
Dos 12 aos 20 anos, o que contava era poder viajar. Nem que fosse para passar o Natal em Garanhuns e, mediante um troco, me esbaldar no meio da multidão da Avenida Santo Antonio, onde participava dos bingos, flertava com as meninas e, com o dinheirinho que me davam, podia comprar livros, a grande paixão. Já a partir dos 14, os pedidos foram se alinhando com os sonhos da época. E esses eram de passar uns meses fora do Brasil. Dos 15 anos em diante, presente para mim era uma passagem da British Caledonian para Londres ou da TAP para Paris. Foi assim que ficaram hibernadas as confraternizações de família já que para tudo na vida havia de se pagar um preço. Se o meu desejo era morar na Alemanha, França ou Inglaterra, pois bem, que esquecesse os folguedos do Recife e que só tomasse conhecimento deles por cartas e fotografias. Natal então passou a ser a festa dos outros e por certo veio daí essa postura de "outsider" que é tão minha até hoje. Esse baixo comprometimento emocional com a data não fez de mim um indiferente absoluto à ceia ou às confraternizações que via acontecer nas famílias onde, vez por outra, era convidado. Mas aderi à convenção de que se tivesse que me esbaldar na última semana do ano, reservaria minha cota para o réveillon. Assim, por muitos anos, abracei o Ano Novo com o entusiasmo de minha índole extravagante. Pois esse nada tinha de piegas, era festa pagã de meu feitio e, por força do calendário, assinalava efetivamente que algo de diferente podíamos fazer de nossas vidas. Daí as listas de promessas que, como é de praxe, apenas sinalizavam intenções.
Depois dos 20 anos, uma nova mudança de paradigma se operaria. Como casei cedo, e sendo a família de minha primeira esposa muito dada à celebração tradicional da festa, aderi pelos anos que durou o casamento à troca de presentes, aos cumprimentos lacrimosos e ao coro de jovens que entoavam músicas para saudar os mais velhos. Era bonito sim, mas o que mais me interessava era o presunto caramelizado que ela preparava, umas fatias de peru com farofa de ameixas secas e os drinques que tomava em profusão, de preferência com os demais desgarrados como eu. Por dever de ofício, tinha que comprar presentes e recebia-os aos montes. Mas antes dos 30 anos, já estava separado, o que significava alforriado daqueles ritos. Nessa época, tive duas namoradas judias – não simultaneamente –, e isso fez com que o Natal fosse data comum de viagem, uma noite em que as passagens eram forçosamente mais baratas e de que nos prevalecíamos para longas escapadas que emendávamos com o Ano Novo. Abriu-se então uma desconexão com a data, e lembro mesmo de algumas noites natalinas que passei só diante da televisão, tomando Champagne e vendo aqueles filmes lacrimosos ambientados nos Estados Unidos em que o final sinalizava sempre com uma lição de amor e fraternidade. Era como se uma ligação emocional tivesse sido extinta em definitivo, especialmente por conta de ter sido exposto a tantas culturas diferentes. Ora, o que era aquela festa para bilhões de chineses e indianos? Quase nada, salvo para comerciantes que trabalhavam para atender ocidentais. Essa relativização bastante boba tomou conta de mim por bons anos. De mais a mais, a vida internacional me obrigava a trabalhar na Europa já na abertura do ano, e isso fazia com que eu viajasse mais cedo em busca, preferencialmente, de um "White Christmas", lá onde ele estivesse associado a outros prazeres.
A partir dos 40 anos, desvencilhado até das comemorações corporativas a que me acostumara uma semana antes das datas críticas, me senti mais livre para viajar já a partir do dia 15 de dezembro para longe do Brasil, o que fez com que passasse a contar nos dedos de uma só mão as vezes que passei junto de algum familiar direto. Destaco o caso de 1999 em que, pouco antes de partir para a Austrália e Nova Zelândia, onde passei o réveillon, estive no Recife por entender que aquele seria o último Natal de papai. Efetivamente, embora ainda dirigisse seu carro e não desse sinal de esmorecimento gritante, morreria uma semana depois, já na entrada do ano 2000. Nos anos subsequentes, uma década de relacionamento com mulheres não-cristãs me distanciou de mais a mais da festa, o que não quer dizer que não curta as vitrines, as guloseimas e o espirito da época. Mas uma aversão incontida a tudo que seja consumismo – um fundamentalismo que me arrepia tanto quanto um homem-bomba – me travou em definitivo contra o caráter oportunista das celebrações, com todo o respeito que merecem os comerciantes que tiram boa parte de seu faturamento desses dias. Menos suportável é ver na televisão as pessoas acorrem ao SPC para "limpar o nome" e, em seguida, incorrerem em novos crediários, o que, francamente, me revolve o estômago, especialmente num país como o Brasil. Certo é que, com raras exceções, passo o dia de Natal só a dois, e raramente em grupo. Isso me poupa do imenso estresse da época, fértil em infartos e AVCs. Muitas vezes me penitencio por não fazer um sacrifício e me apartar de meus hábitos esquisitos para estar com mamãe e outros familiares queridos. Mas para isso temos todo o resto do ano. O fato é que a data é muito próxima do Ano Novo que tem força de atração especial. É por isso que todo ano estou longe de onde deveria estar. O que não me impede de desejar a todos, de coração, um Feliz Natal.
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