A Disney do Leste
Francamente, não gostaria de ser chato. Mas se a honestidade de propósitos passa por sê-lo em alguma medida, pois bem, não vou hesitar em desagradar alguns. Isso dito, avançarei à minha maneira. E para os que ficarem ressentidos com minha crueldade com respeito à bela capital da República Tcheca, saibam que me desagrada ir a contracorrente de uma quase unanimidade. Mas esse é também meu dever de viajante, na falta de ser um turista típico. Chega, portanto, de prolegômenos e tergiversações tediosas, e passemos ao tema que nos interessa.
Ora, convenhamos, Praga (foto) é, sem dúvida, uma das capitais mais lindas da Europa. E não falo só do Leste. Refiro-me a todas as cidades dessa ponta do continente eurasiano, ou seja, de Lisboa a Moscou; de Oslo a Atenas. Debruçada sobre o rio Vlatva e exalando um romantismo tão flagrante que faz dela páreo para Florença, Veneza, Verona ou Sevilha, eis uma cidade cujo casario parece cinzelado na pedra e onde os monumentos fazem as delícias de modelos profissionais e de jovens casais que, maravilhados, fotografam os cisnes do alto das pontes.
Terra de grandes homens e palco de chacinas que embotaram a consciência do mundo livre em 1968 – para os mais jovens, a chamada "Primavera de Praga" desencadeou uma brutal ofensiva russa que esmagou por muitos anos qualquer aspiração de vida democrática no país –, mal caiu o Muro de Berlim, a cidade disparou na frente das demais e, com celeridade, foi se vestindo para fazer jus à denominação de "Paris do Leste". Até aqui, só vejo mérito. Ano após ano, turistas sensíveis à atmosfera pesada de outras capitais já a apontavam como uma exceção.
A esse respeito, os clichês espoucavam: Moscou é gigantesca. Kiev, triste. Bucareste, perigosa. Sofia, provinciana. Budapeste, suja. Bratislava, sem alma. Tirana, um fim de mundo. Varsóvia, um canteiro de obras. Talin, diminuta. Riga, gelada. Vilnius, remota. Minsk, inacessível. Sarajevo, palco de horrores. Belgrado, moderna demais. E assim sucessivamente, não vamos enumerá-las todas. É claro que sempre havia uma menção honrosa para São Petersburgo, Cracóvia ou Berlim. Mas a coroa das favoritas ficava mesmo com Praga.
E, no entanto, apesar de reconhecer que aqui se toma a cerveja mais deliciosa do mundo e que o presunto rivaliza com os melhores, alguma coisa na concepção dessa Meca turística me desagrada profundamente. Isso porque da mesma forma que a força não resulta da ingestão de esteroides nem a beleza verdadeira pede artifícios clínicos que ridicularizam mais do que realçam, uma cidade que entrega seu lindo centro histórico à sanha de comerciantes que vendem tudo o que dá dinheiro – quase tudo –, enfeia sobremodo a ecologia de uma atmosfera de sonho.
Assim sendo, a 50 metros da ponte Charles, se vendem toucas de alpaca andina ao lado de cristais da Boêmia. Mais adiante, se oferecem "spas" de cerveja que nada mais são do que prostíbulos camuflados, tanto quanto as inúmeras casas de massagem tailandesa. Pergunto: o que tem a ver os tanques onde os peixinhos veem mordiscar os tecidos mortos dos pés com a bela Sinagoga espanhola? Que sentido faz manter um coral natalino a essa altura do ano, bem ao lado da árvore intacta, senão manter vivo o espírito comercial da época?
Enfim, o que os franceses chama da cultura "bling bling", aquela que tão bem casa com alguns cânones da ostentação brasileira em dada época e em certos meios – quadros de Romero Britto, torneiras folheadas a ouro e réplicas de estátuas romanas em gesso –, grassa em Praga como se a fazer irônica alusão ao próprio nome da cidade. Trata-se, portanto, de um vale-tudo em que se oferece a emoção fácil como contrapartida a um mínimo de esforço. As experiências, portanto, parecem ser rasas, rápidas e superficiais. É como se tudo fosse planejado para uma foto, pois a fila tem de andar.
Na música, por exemplo, é como se tivéssemos em toda esquina clones do holandês André Rieu, especializado num entretenimento geriátrico e anódino que roda mundo à custa de violinos lacrimosos. Até na culinária, um terreno menos vulnerável ao engodo, a atitude dos atendentes pode irritar o comensal. Na ânsia de agregar valor à conta, eles apontarão com o dedo os pratos que recomendam – não por acaso os mais caros do cardápio. Não é incomum que contestem seu pedido com a pergunta: "Só isso"? Vendedores de pacotes turísticos e cafetões procuram o comprador compulsivo para com eles se locupletar.
Exagero? Talvez um pouco, mas não muito. Ontem mesmo vi um "mediador" levar dois jovens franceses a um cabaré, sob a alegação de que "até 10 horas da noite, a casa oferecia duas mulheres ao preço de uma". Mal sabem os franceses a arapuca que os espera. Cada uma delas pedirá uma taça de "champanhe" – uma gasosa qualquer que tenha bolhas – e, ao final, os gauleses serão aquinhoados com uma conta que lhes sugará o último centavo, diante de dois mastodontes sérvios com cara de poucos amigos.
Outros tantos, siderados pela beleza envolvente da cidade, se comprometerão a tantos programas turísticos diante da perspectiva de descontos em cascata que passarão o dia percorrendo igrejas, museus, cemitérios e monumentos, sem o menor espaço para respirar os ares da velha Praga que, com algum esforço, ainda encontramos. Especialmente longe do centro histórico-turístico. Nesse, as filas dão voltas nos quarteirões e, imagino, ao cabo de dois dias, um turista típico estará extenuado e, ao mesmo tempo, descolado da cidade. Gastou dinheiro e saiu dela sem ter criado empatia.
Para apontar dois setores onde os abusos são de regra, os mais flagrantes são talvez aqueles mais suscetíveis de impressionar os recém-chegados. As comissões de até 20% nas casas de câmbio para a conversão de euros ou dólares em coroas tchecas é um acinte. Onde já se viu uma taxa a tal ponto exorbitante? A toda hora se travam discussões a respeito. E, é claro, os táxis que cobram de acordo com a cara do freguês e se saem com tabelas infladas e sorriso cínico, tal qual em Marrakesh. Menos mal que aqui o transporte público é excelente.
É claro que a comparação com a Disney pode parecer sacrílega para muitos. Sei que se trata de um templo de entretenimento louvado até por adultos. Os mesmos que acham Cancun paradisíaca – uma nesga de praia imensa onde não há uma só livraria. Paciência. Mas a Disney foi originalmente concebida para crianças, o que explica o DNA do lúdico com o alumbramento feérico. Enfim, não pretendo sintetizar unanimidades. Mas, cedo ou tarde, Praga precisará rever sua estratégia de captação de turistas e, oxalá, dará um passo rumo à sobriedade e à fidelização dos viajantes, e não só de turistas. Mas isso já é com eles.
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