Terror nas Ramblas
Voltava do almoço frugal dessa quinta-feira chuvosa na zona sul da capital e tudo indicava que poderia me dedicar aos tópicos da reunião que acontecerá na tarde de amanhã a esta mesma hora. Nem bem liguei o computador para retomar o raciocínio, eis que me deparei com a notícia de mais um atentado terrorista na Europa, dessa feita em Barcelona (foto). Faço um esforço para me abstrair do noticiário até que tudo esteja mais claro, mas não é fácil. Isso porque basta rever o trajeto da van para que um turbilhão de emoções tome conta de mim e me faça reconstituir o que é aquele trecho da cidade, quarteirão por quarteirão, loja a loja. Desde a Praça Catalunya, onde pontifica a loja "El Corte Inglés" até o mercado da Boqueria, algumas centenas de metros mais abaixo.
Na segunda quinzena de agosto, Barcelona ainda não é a cidade agradável a que seus admiradores se acostumaram. Auge da temporada estival, uma parte dos moradores ainda está dispersa por mar e montanha nos arredores. Seja como for, ela esteve no epicentro de três fatos de forte repercussão nas últimas semanas. Primeiro, devido ao recrudescimento da "Generalitat" em favor da independência vis-à-vis Madrid. Celeuma sem fim, fadada a desenlace tão pífio quanto vem sendo o Brexit, certo é que nem mesmo a erosão do prestígio de líderes como Jordi Pujol, acusado de corrupção, arrefeceu o ímpeto atávico que os move nessa direção. Se as razões econômicas têm aqui algum peso, é certo que as penalizações que o franquismo impôs à província ainda reverberam no inconsciente coletivo.
O segundo episódio que valeu manchetes sobre Barcelona em toda a Europa foi a grita dos moradores quanto às aberrações que o turismo de grande escala tem trazido à metrópole. Além de pichações exortando os viajantes a deixá-los em paz, os radicais se insurgem contra a especulação imobiliária na praia urbana de Barceloneta. Um morador indignado dizia que em função da praga do Airbnb, ele recebeu ordem de despejo do pequeno apartamento onde mora há 20 anos e pela qual paga 400 euros ao mês, metade do valor da aposentadoria. Segundo disse, os especuladores querem rentabilizar a localização, reformar a moradia e alugá-la para visitante por três vezes o valor. Misturando causa e efeito, reação comum nessas horas, as diatribes estão só começando e varrem pautas legítimas e ilegítimas de tópico tão polêmico.
O terceiro fato mais clamoroso da comunidade catalã nucleada na cidade foi, evidentemente, o rastilho de pólvora acendido com a defecção de Neymar da equipe azul-grana para jogar pelo PSG. Só quem já conviveu alguns anos com os catalães e com os valores vigentes na cidade de Barcelona pode aquilatar o que isso representou. Nem um cheque de um quarto de bilhão de dólares amainou o impacto de se sentirem desprezados por mais um "pesetero" do perfil do traidor Luis Figo, o português que aceitou a oferta do Real Madrid no começo do milênio. Para os "culés", o Barça é mais do que um time. É uma causa, uma hierarquia de valores, uma ética de vida, uma família e uma visão do mundo nucleada naquela pontinha da geografia mediterrânea. Para piorar o quadro, ainda sofreram duas derrotas face ao rival em poucos dias. É duro de encaixar.
Pois bem, se não tenho simpatias pelo nacionalismo catalão – nem por nacionalismo nenhum, na verdade – nem flerto com aqueles que professam uma visão sectária da vida ancorados em valores estreitos e excludentes, muito menos tenho respeito pelos fanáticos que acabam de perpetrar o sexto atentado similar na Europa, desde o 14 de julho do ano passado, em Nice, na França. Ainda meses atrás, visitei o local berlinense na Kufürstendamm onde um caminhão invadiu o mercado de Natal. Tenho vínculos profundos com Barcelona e lá vivi páginas intensas da vida pessoal e profissional. No momento em que mando à redação este post, os mortos já são 12. É dilacerador. Que a vida possa voltar a prevalecer nesse endereço de beleza e encantamento. E que os passarinhos voltem a trinar nas Ramblas.
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