Sobre o Oceano Atlântico

Um homem de meia-idade, especialmente se for grande e corpulento, deve evitar voos muito longos. Por mais que ele se aplique em tomar bastante água, beber pouco vinho e se mexer na cabine do avião a cada três horas – ademais de tomar uma aspirina e u...
Sobre o Oceano Atlântico

Um homem de meia-idade, especialmente se for grande e corpulento, deve evitar voos muito longos. Por mais que ele se aplique em tomar bastante água, beber pouco vinho e se mexer na cabine do avião a cada três horas – ademais de tomar uma aspirina e usar meias de compressão – é comum que trombos possam se formar nos membros inferiores, especialmente se a viagem for em classe econômica. Assim sendo, chegando à esteira de bagagem, uma vez a circulação sanguínea reativada a pleno, um desses trombos pode decidir passear pelo corpo e vai bater no pulmão. A isso dá-se o nome de embolia pulmonar e é óbito certo em mais de 70% dos casos. Já vi passageiros caindo nos longos corredores, com a respiração travada, e quadro de parada cardiorrespiratória irreversível. Não é nada divertido.

Pelas leis da vida, contudo, tem gente que está se exercitando na calçada e, de repente, vem um carro e a atropela, não é mesmo? E outras tantas morrem dormindo, depois de um dia normal. Morrer, portanto, não é tanto o problema, como apontam as estatísticas. Desagradável é ficar na dependência dos outros. Voltando aos aviões, já vi também passageiros apagarem em pleno voo e uma aeromoça lhes encobrir o rosto com um lençol. Seja como for, sou um irresponsável que não teme os voos longos. Especialmente se por trás deles houver um atrativo. Ora, a caminho da Europa me deparei com três deles para tomar uma rota alternativa, via Etiópia: a) voar por uma empresa que ainda não conhecia; b) parar por algumas horas numa das raras capitais do mundo onde nunca estive e, além de tudo, c) pagar uma tarifa camarada. 

E foi assim que embarquei na madrugada última num Boeing 777 que cruzou o Atlântico em direção a Brazzaville, na República do Congo. A última cidade brasileira que sobrevoamos foi Campos, no Rio de Janeiro. Ao cabo de 12 horas de voo sobre o Atlântico, ao longo da franja norte da zona subsaariana e com o Sudão do Sul a pleno – embalado pela prazerosa leitura de "Histórias Etíopes", de Manuel João Ramos –, cheguei a Adis Abeba (foto) na habitual boa forma e, como sempre, grato ao destino por estar inteiro. Durante a viagem, não bebi álcool, comi frugalmente e conversei com um camarada agradabilíssimo e muito culto, de nome Avelino, proprietário de famoso restaurante na Baixada, que ia para Zanzibar. Rodado de mundo, meu novo amigo é uma enciclopédia em aviação e gostei de saber que voltaremos no mesmo voo.

É claro que o esforço do trajeto se justificaria a pleno se pudesse sair para passear pelas ruas da cidade nessa noite de temperatura tão agradável. E já percebi que seria fácil obter um visto de trânsito para aproveitar o intervalo de conexão. Não vejo sequer problema em meu atestado de vacina contra febre amarela estar vencido e, por acaso, também meio ilegível. Ocorre que o passaporte fica retido na imigração até o embarque. Na verdade, não gosto de me separar dele. Não ligo para documentos em geral tanto é que já os perdi todos há muito tempo. Alguns foram sumariamente cassados, como o título de eleitor. Mas se deixo o passaporte, vai que um tumulto varre o aeroporto antes que eu o recupere. Como vou então cumprir minha missão na Europa? Se ao menos tivesse dois, como as pessoas que têm cidadania dupla. Mas não tenho. 

Vou deixar para passear aqui da próxima vez, que pode ser na próxima semana. Entrementes, fico trabalhando no lounge, curtindo o não-lugar aeroportuário e vendo desfilar perfis tão fascinantes quanto belos. Adis Abeba significa "Nova Flor". Os traços dos etíopes são intrigantes. Nilóticos, cushitas, semitas e indianos – eis uma boa definição. Sorriem sem dificuldade e são, de forma geral, muito gentis, quando a timidez não os impede de ser expansivos. Agora preciso caminhar no saguão por uma hora para ativar a circulação e ver os ares da África nesse micro espaço. No salão reservado da empresa, somos talvez 30 nacionalidades e, para não variar, uma quantidade expressiva de chineses que, pelo que sei, estão dando as cartas da economia por aqui. Hora de oxigenar o corpo. Depois conto mais. 

Bom Carnaval para todos. 

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Quinta, 21 Novembro 2024

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