O czar e o bufão

É tudo uma questão de cognição. No momento em que as relações bilaterais Rússia-Estados Unidos ameaçam bater os níveis mais baixos da história contemporânea com a retirada em massa de diplomatas das duas partes, fico me perguntando o que se passa na ...
O czar e o bufão

É tudo uma questão de cognição. No momento em que as relações bilaterais Rússia-Estados Unidos ameaçam bater os níveis mais baixos da história contemporânea com a retirada em massa de diplomatas das duas partes, fico me perguntando o que se passa na cabeça desses dois homens que atendem por sobrenomes de cinco letras, ambos inciando-se e terminando com consoantes, com a diferença de que Putin tem uma discreta vogal a mais do que Trump. Isso quer dizer alguma coisa? Vale consulta os numerólogos do Apocalipse? Que nada, é só delírio deste escriba. Importante é descer a outro nível de reflexão e nos perguntarmos como ambos se sentem diante do jogo de aprendiz de feiticeiro em que se meteram. Vladimir, crescido no submundo de Leningrado, caçava ratos quando criança. Tendo perdido os dois irmãos mais velhos, teve a infância pobre povoada por relatos da Segunda Guerra que acabara meros seis anos antes de seu nascimento. Na adolescência, abriu caminhos pela força dos punhos. Donald, crescido em Nova York, foi dos poucos de sua geração a jamais aprender a fazer a cama. Para isso, tinha uma leva de "Conchitas" hispânicas a serviço da família. É verdade que mais tarde provou ser durão quando o pai o emancipou e ele foi à luta com algum topete e muita garganta. Se isso não quer ainda dizer muita coisa, os fatos nos dão uma pista para entender o que talvez lhes escape hoje. 

Ora, quando Putin fez acenos amigáveis e se dispôs – da forma mais cerebral que se possa conceber – a lançar algumas pontes para facilitar o triunfo político de Trump, talvez lhe tenha ocorrido o seguinte cenário: a) Se eleito, Donald será um presidente agradecido e poderá abrir o caminho para facilitar a vida do Kremlin em diferentes palcos geopolíticos do mundo; b) Se eleito, e se seu "entourage" for pilhado com a boca na botija – que aqui significa em conversas sinistras com altos mandatários de Moscou –, o problema será dele. Na cabeça do czar, um cara durão de verdade sabe enquadrar gregos e troianos, e jamais vai se voltar contra aquele que lhe deu uma mão até recentemente, desvelando bastidores de campanha da forte adversária; c) Por último, contabilizou-se o fracasso. Se Washington resultar enfraquecida, é claro que Vladimir e os seus têm algo a ganhar mesmo porque um desvio de foco de atenções poderá sempre beneficiar a Rússia. Nesse contexto, o detalhe que Putin deve ter-se proibido de pensar foi que a gratidão de Trump não somente não iria poder se manifestar, mas que este resultaria encurralado, para não dizer refém de uma situação em que, por paroxismo, teria de respeitar um protocolo quase hostil a quem lhe ensinou o feitiço. Em suma, o czar deve ver no bufão um sujeito fraco. E este pode começar a ver no ex-aliado uma entidade satânica, que enredou sua sacrossanta família numa teia de que ela terá problemas para se desvencilhar.

Para agravar esse contexto de distopia mutuamente infringida, a História se deslinda por outras vicinais que não passam necessariamente pelas vontades presidenciais, especialmente em Washington. Um capítulo que ainda está sendo escrito é o que diz respeito ao sucedido ao milionário americano Bill Browder, diretor do fundo Hermitage Capital Management, expulso da Rússia 12 anos atrás por ordem de Putin. Aliás, Browder não hesita em apontá-lo como o homem mais rico do mundo na atualidade. Se sua fortuna chega mesmo a US$ 200 bilhões, esta é questão de somenos. Importa que o advogado de Browder, Sergueï Magnitski, foi assassinado na prisão russa e, desde então, vem se formando uma mobilização em Bruxelas e Washington que mina a capacidade de se manterem as aparências de um lado e do outro. Para tanto, já que não quero me alongar além do que manda a cortesia, recomendo a leitura do livro "Alerta vermelho", já publicado no Brasil, onde se lê em retrospectiva o modus operandi russo na hora de usar a fora do cargo, o que reduz os poderes de Tump a vitupérios de um bufão. No momento em que finalizo essas anotações, no entardecer do último dia de julho aqui na França, a imprensa dá conta do choque com que conheceu um certo Anthony Scaramucci, o chefe do serviço de comunicação da Casa Branca. Entre obscenidades de todo tipo, o nível afunda e, com ele, assoma a falta de interlocução para fazer face à agenda imponderável do mundo.

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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