Estrasburgo, luto no Natal

O outono de 2018 ficará marcado como um dos melhores de minha vida. Percebendo que as eleições brasileiras tomavam um rumo que, embora compreensível, era totalmente estranho a meus padrões de predileção, resolvi colocar a viola no saco e me dedicar a...
Estrasburgo, luto no Natal

O outono de 2018 ficará marcado como um dos melhores de minha vida. Percebendo que as eleições brasileiras tomavam um rumo que, embora compreensível, era totalmente estranho a meus padrões de predileção, resolvi colocar a viola no saco e me dedicar a um projeto de há muito sonhado, qual seja, o de escrever um romance que retrate pela força de seus personagens, um pouco do que foi a história do Brasil e do mundo do fim da Segunda Guerra Mundial até hoje. Diante de escopo tão ambicioso, impunha-se um tempo de recuo com relação ao Brasil, onde a mais neutra das pessoas teria dificuldade de se manter preservada, sem ser importunada por torcedores dos presidenciáveis finalistas. 

Para tanto, valendo-me da amizade e da atenção de uma amiga que estaria fora de Estrasburgo neste mesmo período, aceitei a hospitalidade dela e me transferi para a Alsácia na primeira semana de outubro com a intenção de lá ficar dois meses. Dada a centralidade de Estrasburgo, me deslocaria para todos os pontos que fossem do interesse de meu livro, a começar pela Feira de Frankfurt, a que compareci com entusiasmo. Intercalei ainda a estada com uma quinzena dedicada a compromissos no Brasil, mas não via a hora de retomar a doce rotina da cidade e de reatar com seu clima e sua gente, à medida que o outono avançava. Algumas coincidências desviaram um pouco o foco. Em outubro, a morte de Aznavour. Em novembro, a prisão de Carlos Ghosn no Japão. 


Na última sexta-feira do mês passado, foi inaugurado o chamado mercado de Natal, que ocupa todo centro histórico de Estrasburgo, e se espalha por pequenas praças a que normalmente não atentamos fora da temporada festiva. Com isso, estimulado pelo vinho quente e pelas delícias da cozinha popular que são de regra em centenas de barracas, passei a caminhar até lá no meio da tarde, onde ficava até as primeiras horas da noite. Com esta higiene de vida, conseguia manter uma rotina produtiva e prazerosa. A solidão, companhia propícia para a escrita até dos menos talentosos, não chegou a incomodar. Quebrei-a apenas com a visita de um casal de amigos da Alemanha, mas ocasionalmente, também conversava com comerciantes, garçons e livreiros.   

Com a chegada das festas e a enorme afluência de turistas de toda a Europa, era normal que a segurança ficasse alerta. Algumas paradas de ônibus e de bonde do centro foram canceladas, e os pedestres passaram a ser submetidos a rápida inspeção nas pontes, feita com mais simpatia do que eficiência. Mesmo assim, como teuto-gauleses que são, alguns alsacianos se queixavam dos controles. Dias após dia, os comerciantes celebravam que o movimento dos Coletes Amarelos tivesse feito apenas uma leve e amistosa incursão ao mercado, sem quaisquer vandalismos, justamente para mostrar que é, no geral, formado por homens e mulheres de boa vontade. E, assim, a cidade seguia sua rotina, aconchegada pelo espírito de sorrisos e cumprimentos que perpassa a época. 

Até que no dia 11, terça-feira, soou a hora de eu ir embora. Sempre com a sensação de que poderia ter feito um pouco mais em favor do livro, o saldo era largamente positivo. Segui de trem para Paris e de lá comecei a viagem de volta ao Brasil, com uma escala aqui na Turquia. Ao desembarcar, soube que alguém teria promovido um tiroteio no coração do mercado de Natal (foto). E que os feridos eram inúmeros, a que se somavam quatro óbitos. Que sentimento a pessoa tem numa hora dessas? Alívio por não estar mais lá? De certa forma, sim. Mas comigo ele é temperado por certo lamento de não poder hipotecar a Estrasburgo minha solidariedade, justo quando ela mais precisa da voz de seus entusiastas. Se ela me deu tanto em oito semanas, por que eu não poderia lhe dar algo em troca em um dia?    

O que quero dizer é que meu coração está com os comerciantes do mercado de Neudorf onde compro salame e queijo. Com os atendentes das barracas beneficentes onde examino as lembranças natalinas. Com os garçons do "Lard et Crème", meu restaurante do dia a dia. Com as senhoras distintas que conversam sobre literatura com tanta afabilidade e elegância na livraria Gallimard. Com os condutores de bonde, os motoristas de ônibus, os torcedores do Racing e o dono do quiosque de jornal da Route du Polygone junto a quem compro todo dia os jornais. Não sei quando voltarei à Alsácia, mas o futuro aqui não conta. O que importa é este passado de pequenas alegrias que vivi no cotidiano, e o presente, que espero reconduzir Estrasburgo à ventura e à recuperação de sua autoestima abalada. 

Estou muito triste. Como poderia ser diferente? 

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Sexta, 17 Mai 2024

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