Distopia: palavra corrente

A direita se vê obrigada a engavetar a virtude. E a esquerda está legitimada para usar o sonhado talonário assinado de cheque em branco
Líderes de papelão começam a se desfazer sob o fogo brando do mais solerte dos inimigos

De Paris (França)

Durante os últimos cinco anos, a palavra distopia, em suas diversas variantes multiuso, tinha virado o chavão preferido da cultura mundial, digamos assim. Presente na literatura, na economia, na sociologia e na filosofia, ela aludia a um universo em destruição, a um imenso edifício que desmoronava, muitas vezes sem que as pessoas soubessem explicar exatamente por qual razão o diziam, a que ponto se referiam. Era mais uma espécie de malaise, de mal estar com o mundo, agravado pela proeminência de lideranças políticas canhestras que em nada lembravam as figuras cardeais do estadismo, tal como o concebiam os nascidos lá atrás, os que hoje têm 60 anos ou mais – só para estabelecermos uma linha de corte confiável.

Mas então veio a era do Corona para botar as coisas em pratos limpos. Líderes de papelão começam a se desfazer sob o fogo brando do mais solerte dos inimigos. Muito mais do que colocar a nu a precariedade da narrativa dos títeres do mundo, a guerra sanitária trouxe à baila uma tragédia de dimensões tão aziagas quanto inesperadas. Assim, o liberalismo sofreu um duro revés. Tendo de dar um passo para trás, o discurso da esquerda, esta sempre tão ciosa em enredar-se na total irresponsabilidade fiscal, ganhou primazia. E quando já o dávamos por morto e liquidado, ei-lo ressurrecto por conta da imensa catástrofe humanitária a que não podemos ficar indiferentes. Eis, por fim, o verdadeiro bug do Milênio, que chega com 20 anos de atraso e da forma mais paralisante.

Nesse contexto, é possível que minha geração não viva para ver a ordem mundial minimamente assentada sobre os primados que mais me empolgaram a vida adulta: o estado mínimo, a entronização da meritocracia, a consagração do acesso à oportunidade para todos, a desregulamentação do comércio e as fronteiras abertas para o livre trânsito. O que teremos? O primado de um dos credos mais caros à esquerda: irresponsabilidade fiscal, assistencialismo, protecionismo, paternalismo, dirigismo, estatização e, é claro, a entronização de lideranças tão ocas como algumas que tivemos à má direita, e que lhe prestaram imenso desserviço. Em suma, é o pior dos mundos. A direita se vê obrigada a engavetar a virtude. E a esquerda está legitimada para usar o sonhado talonário assinado de cheque em branco.

Nesse tiroteio, um alvo monstro chamado Brasil, colhido bem no meio da tempestade perfeita. 

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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