Beirute: a explosão de um renascer

O que mais me chocou foi a estocagem de um volume destes de nitrato de amônia
Manter isso num depósito por sete anos é um crime que desnuda, ademais dos interesses milicianos ocultos, o descaso da máquina pública

De Paris (França)

Que Beirute vai se recuperar do imenso trauma da explosão de nitrato de amônia, não tenho qualquer dúvida. Depois de uma reconstrução que tem tudo para encantar os olhos e reavivar a vocação fenícia do renascer, é possível que dentro de mais 20 anos outra catástrofe venha a desafiar a inventividade e a veia empreendedora de seu povo. E então outro ciclo será inaugurado. No caso da catástrofe mais recente, é até esperável (senão inevitável) que ela catalise uma agenda de reformas que está tardando a se impor, especialmente no que diz respeito ao combate à corrupção e à instrumentalização do país como palco obscurantista, o que contraria a vocação da cidade cosmopolita, a meio caminho entre Ocidente e Oriente.

O que mais me chocou foi a estocagem de um volume destes de nitrato de amônia. Sem quaisquer laivos de presunção, não exagero se digo que nenhum brasileiro conhece o mercado mundial de nitrato de celulose como eu, que atuei nele durante anos, como diretor da CNQB-Votorantim, em São Paulo. O que vendi ao longo dos anos – dezenas de milhares de toneladas – eram suficientes para destruir não apenas Beirute, mas todos os portos do Mediterrâneo oriental. Não vou contar essa história aqui. Nitrato de amônia é um primo de nosso carro-chefe, que vendíamos para mais de 60 países entre os anos 1980 e 1990. Nosso maior temor sempre foi que a carga pudesse cair nas mãos dos narcocartéis do México e da Colômbia.

Enviar amostras disso era quase impossível. Armazenar era um inferno. Para tanto, visitei dezenas de paióis de Forças Armadas, e acho que o máximo que vi fora de nossa fábrica, foram 120 toneladas em Keelung, Taiwan. Ora, em Beirute eles tinham 2.750 toneladas. São 2.750.000 quilos ou dois bilhões e setecentos e cinquenta milhões de gramas de um produto que, se seco, com o fator umectante evaporado, vira pólvora pura. Manter isso num depósito por sete anos é um crime que desnuda, ademais dos interesses milicianos ocultos, o descaso da máquina pública, o bate-cabeça da burocracia, o jogo de empurra entre o porto, a alfândega e os poderosos. Não poderia ter havido prova mais cabal de falência do Estado do que essa.

A nitrocelulose que exportávamos se destinava a diversos segmentos: repintura automotiva (laca Duco), vernizes, colas e tintas de impressão. Em alto grau de nitrogênio, chegava ao uso dito militar – para além de 12.5%. Tínhamos uma imensa fábrica em São Miguel Paulista, excessivamente compacta (portanto um pouco perigosa), e uma das maiores do mundo. Ironicamente, em alguma medida, a nitrocelulose foi o aríete da internacionalização do grupo Votorantim. Sem fazer ilações sobre as origens e fins da mercadoria que explodiu em Beirute, posso dizer que a cena foi tal e qual a que passei parte de minha vida temendo mesmo porque tínhamos aqui e acolá distribuidores menos prudentes. Que a explosão de Beirute seja uma metáfora sonora e sangrenta de mais um renascer.

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Quinta, 28 Março 2024

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