Anthony Bourdain: morte na Alsácia
O que foi isso, meu caro Tony? Explique-me o que pode ter levado essa figura exuberante e grandalhona a dar fim à vida em plena sexta-feira? E, ironia das ironias, num quarto de hotel de Estrasburgo, um recanto da França que exsuda exuberância nesses dias que antecedem a entrada oficial do verão? Convenhamos, rapaz, sei que o suicídio merece respeito e recato, e recomenda que não se façam julgamentos apressados. Mas desde que soube do ocorrido, há alguns minutos, a primeira de suas histórias que me ocorre é aquela passagem hilariante de "Cozinha Confidencial" que, segundo você, foi determinante na escolha da profissão. Posso contá-la para quem ainda não a conhece? É bem divertida.
Foi assim. Você trabalhava num restaurante e estava rolando um casamento no recinto. A noiva tinha aquela expressão angelical e estava vestida de branco. Muitas rolhas de Champagne mais tarde, você foi a uma das áreas de serviço e o que viu? Essa noivinha imaculada estava aos amassos e beijos com quem? Com o próprio chefe encarregado da festa. Ao vê-la de vestido levantado, celebrando ao modo dela a sacralidade do momento, você disse a si mesmo que aquela era a profissão que queria abraçar. Em seu imaginário de aprendiz, chefes de cozinha eram donos de prerrogativas e privilégios que iam muito além dos gritos ao pé fogo. Nunca esqueci essa história, rapaz. E sempre achei-a emblemática e verdadeira de como se escolhe uma carreira.
Não sei quais eram seus planos em Estrasburgo. Mas se tivéssemos nos encontrado em algum ponto do centro, onde estou com tanta frequência, juro que o teria convidado para um programa especial. Eu o teria levado até a Route du Polygone, a uns 20 minutos de caminhada, e teria te apresentado ao La Scala, meu ponto de referência quando estou ali em Neudorf. Então teríamos pedido um Riesling de primeira e, na sequência, um chucrute de três peixes que você teria adorado. É o que faço quando estou por ali. De resto, amigo, poderíamos também pegar o carro e ir até as adoráveis Kaysersberg ou Riquewihr para que você admirasse as casinhas de enxamel com balcões ornados de flores, debruçadas sobre pequenos cursos de água.
Não, Tony, é difícil entender que um sujeito que tinha tanto amor à vida possa tê-la abreviado desse jeito. Será que você pensava no momento fatal no também chefe Bernard Loiseau que, diante de rumores de que perderia a terceira estrela do Michelin, entrou em desespero e se matou com um fuzil de caça? Não, duvido. Apesar das origens francesas, você não teria chegado a tanto. Mesmo porque nesses últimos anos você era antes de tudo um homem de televisão, um embaixador de todas as boas cozinhas, onde quer que elas estivessem. E quem fala de comida e convivialidade, fala de paz e harmonia, da arte do encontro e das boas conversas. É uma pena que você tenha decidido nos deixar hoje, meu caro, mas respeito sua decisão.
O único gesto que posso fazer para homenageá-lo nessa sexta-feira de sol no Recife é ir até o Bar do Luna – lugar que tem a tua cara – e lá vou me esbaldar num chambaril de arrepiar. Antes, porém, vou tomar uma cachacinha e provar um sarapatel com farinha e pimenta. Então, embora triste, vou erguer um brinde a você, uma figura que fez muito mais pela integração dos povos e das culturas do que as Nações Unidas conseguiram fazer da criação até hoje. E onde você estiver, receba o abraço já saudoso de quem o lia, assistia e admirava. Ter tido três minutos de prosa com você em São Paulo me deixou aquela sensação de que voltaríamos a nos ver e nos cumprimentaríamos como velhos amigos. Não deu, meu camarada. Sua jornada foi linda. E deliciosa.
Bon voyage!
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