A polêmica de Florença

Percebo que há uma tentativa de demonizar um viés que pode ser considerado elitista

Há cerca de um ano, escrevi para o blog Ao Redor do Mundo uma das centenas de crônicas de viagem de minha lavra aqui já publicadas. Como viajo muito, discorrer sobre as paisagens físicas e humanas do mundo é uma missão que me atribuo com alegria embora rara vez haja uma manifestação dos leitores a respeito de seu teor – positiva ou negativa. Foi nesse contexto que acolhi com surpresa (boa, acreditem) os comentários acerca de minhas digressões sobre Florença, cidade que, para minha alegria, conta com um fã clube aguerrido e devotado. Ora, tendo eu feito referências ácidas aos padrões de hospitalidade de lá, eis que meu editor recebeu o protesto dos leitores. É sobre essas reações que gostaria de falar hoje.

a) Meu primeiro destaque vai para o artigo que desencadeou a fúria. Carreguei nas tintas? Estava num dia ruim? Não. O texto reflete bem minhas impressões e não retiraria uma vírgula do que foi dito. Conheci uma Florença encantadora na virada do milênio, muito embora os moradores já suspirassem de saudades dos velhos tempos em que ela era ainda mais bela. Dei-me por satisfeito com o que vi da primeira vez. Na sequência, o nível foi caindo;

b) Embora não conheça o perfil dos leitores que comentaram o artigo, imagino que sejam razoavelmente jovens. Assim sendo, minha acidez deve ser contextualizada. Tenho 61 anos, 46 de estrada em todos os continentes, muitos deles em missões profissionais. Sou especialista em negociações complexas entre culturas estrangeiras e poucas pessoas rodaram tanto o planeta. Daí que muitas vezes tenha expectativas além da média;

c) O leitor David Feiten, por exemplo, dá a entender que talvez me agradasse um muro de contenção contra o turismo "low cost", que preservasse meus amigos "limpinhos e cheirosos" da fedentina de urina e água sanitária que reina nas ruelas à noite. Sou contra muros. Durante meu longo trajeto de viajante (nunca consegui ser turista na acepção do termo, desses que se deslumbram com monumentos), sempre construí pontes, nunca cercas;

d) A leitora Alda fala de governos de esquerda como fracos e benevolentes. A vida política italiana não me causa grande interesse e desconheço as cores partidárias de Florença. Seja quem for o gestor, sei que o que conta é o dinheiro. Isso dito pelos amigos locais. Fecham-se os olhos para as aberrações e faz-se de conta que vai tudo bem enquanto as ruas viram camelódromos assombrosos que desfiguram a paisagem. Como acontece com Veneza, aliás;

e) Letizia Mazza tem razão quando alude ao caráter raso de minha visita, especialmente por não ter feito referências ao imenso acervo artístico da cidade. Vale dizer que não sou guia turístico. Parto do pressuposto que todo mundo que vai a Florença conhece este lado, e já se extasiou com ele. Meu leitor está além das expectativas de um iniciante. Falo para viajantes, gente que viaja para se conhecer, e não para se deslumbrar com monumentos;

f) Mayara pergunta como "alguém" tem coragem de publicar uma "vergonha" dessa? Tem a palavra meu editor. Eliana, Ana e Cristiane vão pela linha de deplorar que eu tenha perdido uma boa oportunidade de conhecer a cidade (já conheço de muitos outros carnavais), e aludem a que suas experiências foram bem mais positivas do que as minhas. Mas que ótimo. Que escrevam a respeito. Afinal, viagens são cheias de subjetividade. Nem todo mundo gosta do mesmo.

g) Mariane queria saber se gostei do David, de Michelangelo. Pois bem, conheço-o de outras visitas e embora não esteja entre meus favoritos, é impressionante. Dessa vez, é claro que não o vi. Precisaria de uma manhã para achar caminho no meio de turistas. Já passei da idade. Preferi mesmo achar um restaurante menos asqueroso, o que se torna buscar agulha em palheiro, tantos são os menus fakes para agradar o paladar geral;

h) Por fim, Imperius diz que sou um elitista para quem meu dinheiro (que é pouco) deveria comprar acessos exclusivos – um truísmo de aceitação plena. Quem pode mais (não é meu caso), procura a exclusividade de espaço em aviões, hotéis e até em idas a museus. Já dizer que acho que os "menos abastados" não deveriam ir onde vou, é porque decididamente não me conhece. Sou o oposto e gosto de ver todo mundo viajando.

Será que disse tudo? Espero que sim. Percebo que há uma tentativa aqui e acolá de demonizar um viés que pode ser considerado elitista. É isso mais do que o amor à Toscana que moveu os aguerridos missivistas. Eu não tenho problema com isso. Se ser elitista é não ter medo que o chamem por tal, sou um deles. Espero que continuem a curtir Florença por muitos anos. Estejam certos de que vocês dificilmente me verão por lá, Roma ou Veneza. Obrigado a todos. 

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Quinta, 28 Março 2024

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