A natureza em fúria

Invejo até certo ponto as pessoas que se sentem bem ao ar livre, em franco contato com a natureza. Não sou assim. Embora admire as belezas naturais, nunca me empolguei com a ideia de dormir na areia à beira do mar, acampar numa montanha distante e ex...
A natureza em fúria

Invejo até certo ponto as pessoas que se sentem bem ao ar livre, em franco contato com a natureza. Não sou assim. Embora admire as belezas naturais, nunca me empolguei com a ideia de dormir na areia à beira do mar, acampar numa montanha distante e explorar trilhas cheias de cipós e de olhos que nos acompanham sem que saibamos. Ademais, não conseguiria dormir com insetos zunindo ao ouvido e tenho pavor ao calor. Picadas de borrachudo podem desencadear reações alérgicas e tenho mais medo de uma abelha do que de um cão feroz. Isso não quer dizer que tenha sido um almofadinha de apartamento e um refém do ar refrigerado a vida toda. Já fiz aventuras que desmentem todo o acima. Acampei em desertos em pleno verão e enfrentei intempéries serenamente. Mas hoje já tenho 59 anos e não quero incorrer no ridículo supremo que é ignorar a idade e me meter a escalar o Everest para fazer bonito. Tenho desafios mais concretos com que lidar. E ademais, a busca desesperada do heroísmo já não se justifica, pois se ele der certo, o que farei com seus dividendos? Acaso namoraria com várias mulheres ao mesmo tempo? Não, não seria sensato nem prudente. 

Como um tema puxa outro, lembro-me da vez que cheguei a Manila, nas Filipinas, e lá presenciei o auge da passagem de um tufão diabólico. Era a própria natureza em fúria do título. Da janela do quarto do hotel – selada e lacrada –, vi o vento infernal fazer com que os coqueiros beijassem o chão. Semáforos e painéis publicitários voavam pelos ares como se fossem de papelão e o furor das águas arrastava caminhões pelas avenidas alagadas. A cidade ficou alguns dias para se restabelecer e contavam-se dezenas de mortos por choque elétrico, deslizamento e afogamento. Outra vez em que vi a natureza ficar insana foi por ocasião de um grande terremoto em Taiwan. O monotrilho de concreto armado que serve o centro da capital balançava como um varal de roupa ao vento e tínhamos a impressão de que os prédios dançavam de acordo com as vibrações de terra. Quanto tempo durou o tremor mais duradouro? Não sei. E depois ficava a questão: foi o último ou vem outro ainda maior? De novo, ninguém sabia. Como reunir coragem para subir muitos andares até o apartamento para pegar a bagagem? Mesmo que tomasse duas doses de conhaque, poderia faltar reflexo na recidiva. Enfim, são dramas de quem foi poupado do pior até hoje.  

Alinhei as reminiscências acima para suavizar um pouco o impacto do incêndio florestal na região de Leiria, centro de Portugal, no último fim de semana. E que chegou até mim sob forma de fuligem e de um escudo de neblina que cobria o céu da capital na manhã do domingo. A combinação de mata densa, galhos secos, um raio fortuito de uma tempestade sem água e de ventos em direções múltiplas, possibilitou a propagação do fogo em todas as direções e muita gente se viu prisioneira de uma armadilha que cobrou o preço de mais de 60 vidas. Para dificultar um quadro único e, segundo um bombeiro, de "natureza zangada", muitas das áreas eram inacessíveis por rodovia, o que só fez alimentar a virulência das chamas que originaram labaredas de espantosos 50 metros de altura. Foi um triste evento. Quando desastres dessa magnitude ocorrem e desnudam nossa insignificância diante da chamada conflagração dos elementos, somos tomados por grande insegurança. Ela advém da consciência de nossa fragilidade. É como se sente uma pessoa durante doença grave. E quando o mal vem por atacado, acometendo a sociedade, todo o resto – para o bem e para o mal – fica insignificante. Até que o susto fique para trás e a vida retome gradativamente.   

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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