A fratura celta
Dia após dia, semana após semana e mês após mês, a Europa se aproxima do dia 29 de março de 2019. Se a chegada do marco fatídico da consecução do Brexit tira o sono de alguns dos 27 países do continente – de uns mais e de outros menos –, é lícito esperar que o mesmo esteja ocorrendo com intensidade redobrada do outro lado do canal da Mancha. Em Londres, não são poucas as vozes que apontam o referendum de 2016 como um dos marcos mais desastrosos da história contemporânea. Nesse contexto, milhares de cabeças foram postas a trabalhar por sobre os humores deteriorados, para antecipar os entraves que decorrerão da saída do Reino Unido da União Europeia. Certo é que estão longe de antever com clareza as soluções aplicáveis.
Assim sendo, cidadãos britânicos que vivem há muitos anos no continente se desesperam com a possibilidade iminente de ter que pedir visto e tramitar papelada tortuosa para voltar aos países onde têm vivido, muitas vezes, há mais de dez anos. Regiões subnacionais que têm nucleada em Londres parte importante de seu faturamento, tentam estabelecer um canal de entendimento direto com seus parceiros – igualmente desarvorados –, procurando se acautelar contra o dia em que quilômetros de caminhões terão de esperar longas horas para chegar aos mercados, hoje acessados com todas as facilidades que se pode conceber. Imagine-se o retrocesso que significa a clivagem de critérios de classificação fitossanitária e farmacêutica. Só os burocratas vibram.
Nesse contexto tenebroso sobre o qual paira a sombra de uma espécie de Anvisa que tudo paralisaria, indiferente aos danos catastróficos que pesariam sobre a cadeia econômica, o ex-premiê Tony Blair tem tentado vocalizar o bom senso. Ora, o jogo está de tal forma calcificado entre posições rigorosas contra a Grã Bretanha, caso da França, e outras mais amenas, caso da Holanda, que o panorama britânico se divide entre os otimistas ingênuos, para quem tudo tende a acabar bem (e se não está bem é porque não acabou), e os pessimistas cínicos, que acreditam na desintegração do bloco europeu e/ou na boa vontade dos continentais para com os insulares, por medo de acender o rastilho de pólvora da cizânia e da separação. Isto vale uma reflexão.
Pois bem, quem de sã consciência não se preocupa com a fratura celta? Há poucos anos, tomei o ônibus em Belfast e, contra pagamento em libras esterlinas, cheguei à zona do euro de Dublin. No trajeto, uma discreta senhora me falava a voz baixa sobre o significado daquela zona que atravessávamos com tanta naturalidade. "Nem na Cortina de Ferro havia uma passagem de fronteira tão tensa quanto esta daqui. O que vivemos hoje, parece sonho. Tem gente que mora na Irlanda do Norte e trabalha na Irlanda, ou vice-versa. Isto era impensável nos tempos que o mundo todo conhece". Ou seja, o que estamos vendo é que essa fratura, depois de cicatrizada, pode perder o status de símbolo da concórdia e então o monstro vai arreganhar os dentes.
Ora, para extrema alegria dos cínicos, se o exemplo vingar, e se a Europa não for condescendente com algum tipo de flexibilização aduaneira, movimentos separatistas poderão eclodir em vários países, a começar pela Espanha onde os catalães continuam com o proverbial puxa-encolhe. Não são poucos os que dizem que este é um problema estritamente de Londres. Afinal, no referendum de 2016, 56% dos irlandeses do Norte voltaram a favor da permanência britânica na UE. Quase tanto quanto os 62% de escoceses. Fica a batata quente no colo de Theresa May (foto), essa triste figura que até no olhar, parece trazer os livores da morte. Foi mesmo uma enorme pena. A nós, os entusiastas do condomínio europeu como instrumento de paz, resta esperar um milagre.
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