R.I.P., LFV
"Não faça biscoitos, faça pirâmides", aconselhava Guimarães Rosa a um iniciante Fernando Sabino. A metáfora culinário-arquitetônica era óbvia: o mineiro deveria se dedicar aos romances, potencialmente eternos, e não às crônicas, gênero tido como menor dado o seu consumo fugaz e imediato.
Alheio a classificações e preconceitos, Luis Fernando Verissimo, morto no último dia 30, produziu desde o fim dos anos 1960 as mais saborosas fornadas de biscoitos da imprensa brasileira sob a forma de textos e cartuns – sem, contudo, deixar de dar alguma razão à Rosa. "A crônica é um texto efêmero, tem vida curta", disse certa vez. "Ela perde o sentido muito rapidamente. Daqui a cinquenta ou setenta anos, ninguém vai saber quem eu era ou o que eu fazia".
Modéstia ou senso de realidade, como definia?
Um pouco dos dois. Se, por um lado, a crônica e a charge tendem mesmo à perecibilidade, por outro dão acesso a um leitorado muito maior que o da literatura propriamente dita – e, por consequência, a uma legião de admiradores que, se não transforma um autor em clássico, ao menos oferece-lhe um reconhecimento em vida que talvez a posteridade lhe negue. Há muito mais gente disposta a comer guloseimas do que a visitar edificações, afinal.
Um justo reconhecimento, aliás. Escrever ou desenhar sob a pressão dos prazos e dos espaços diminutos, diária ou semanalmente, é um teste de criatividade e capacidade intelectual para lá de exigente – tanto quanto erigir durante anos um monumento romanesco. O que a pressa e o momento exigem em tirocínio e manejo das palavras podem ser vistos como equivalentes, em talento, à aventura de elaborar enredos, construir personagens e espalhá-los por páginas e mais páginas.
LFV desincumbia-se da tarefa confeiteira com louvor, pois produzia muito e bem. Cada biscoito, afinal, tinha de valer por si, independentemente do restante do lote, pois era direcionado a um cliente diferente, com exigências próprias de paladar: revistas semanais, diários de circulação nacional, informativos de sindicato, coletâneas temáticas. Avaliados um a um, os quitutes mereciam a degustação; a qualidade do que punha na vitrine era bem superior à média do que se lê por aí. É bem mais fácil esconder os defeitos sob granito e calcário do que em meio à farinha, açúcar e ovos.
Somando-se todos os biscoitos produzidos durante meio século tem-se uma pirâmide, ou quem sabe um pequeno conjunto delas? Pouco importa. "Nem só de pirâmides vive a literatura", escreveu Fernando Sabino em uma crônica (onde mais?) sobre o episódio com Rosa. "O negócio é pensar sobre as coisas, e tentar pensar bem, mas nunca esquecer que nada vai ficar gravado em pedra, ou fazer muita diferença" (p. 39), lembrava o próprio Éle Éfe Vê.
Eis a motivação (e o consolo) deste blogueiro e de todos os que se aventuram na cozinha.
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