O cavalinho cresceu e corre o mundo
Sexta-feira, 30 de junho. Greve geral em todo o país. Na sede do grupo Renner Herrmann, os irmãos Thomas e Marcos Herrmann espiam a segunda paralisação dos trabalhadores em quatro meses. Os protestos contra as reformas trabalhista e previdenciária conduzidas pelo governo parecem enfraquecidos. Os dois concluem que a população, cansada do enredo político que parece não ter fim, quer mesmo é tocar a vida para frente. Foi exatamente o que a própria Renner Herrmann fez durante suas nove décadas.
Desde que foi fundada em Porto Alegre, em 1927, a fabricante de tintas enfrentou turbulências políticas e econômicas de todas as intensidades. Tal como uma avó nonagenária na cabeceira de uma mesa repleta de filhos e netos, ela pode se orgulhar por ter visto de tudo: uma Guerra Mundial entre as décadas de 1930 e 1940, o impulso desenvolvimentista de Kubitschek nos anos 1950, o avanço das multinacionais no mercado brasileiro, no decênio seguinte, o “milagre econômico” dos militares, a estagflação e os inúmeros planos econômicos da década de 1980, além de, mais recentemente, a estabilização da moeda e os dois impeachments de presidentes do Brasil. E, o mais importante: pode se orgulhar de ter sobrevivido a todos esses momentos, e prosperado.
Para isso, a Renner precisou aliar a disciplina e a obstinação, que vêm das raízes germânicas de seus fundadores, a um jogo de cintura muito brasileiro, de modo a se adaptar às mais diversas realidades – e delas extrair oportunidades. Como as que surgiram em 1933, quando, em meio ao processo de incentivo à industrialização nacional e à falta de embalagens metálicas no país, a Renner criou a Metalgráfica, para produzir as latas que embalariam seus produtos. Este senso de oportunidade não respeitaria barreiras geográficas, oito décadas depois, quando os resquícios da crise econômica mundial facilitaram a aquisição de uma fábrica de tintas nos Estados Unidos, em 2012, permitindo a entrada em um mercado até então inédito para a companhia gaúcha. Ao balanço dos acontecimentos, a Renner passou de uma pequena empresa de tintas a um grupo de cinco empresas que atua tanto no seu segmento tradicional como no de embalagens, madeira e laticínios, mobilizando 3 mil funcionários no Brasil e no mundo.
Pintar na liderança
Apesar de ousada, a trajetória da Renner Herrmann durante quase um século ocorreu de forma discreta. Não é comum que os investimentos, as conquistas de novos mercados e, muito menos, os insucessos, ganhem as páginas da imprensa como acontece nesta edição de AMANHÃ. “Este estilo mais recatado faz parte da nossa história, sempre foi assim. Nossa cultura de casa era assim, o que acaba sendo transmitido para a empresa”, admite Marcos Herrmann, diretor vice-presidente. Nem por isso, porém, os irmãos Herrmann escondem que os principais objetivos para as divisões de tinta do grupo estão fora do Brasil. Desde 2015, as vendas no exterior têm superado as do mercado interno, padrão que não deve mudar nos próximos anos. Pelo contrário. A orientação para o mercado externo deve, inclusive, se acentuar conforme revela o diretor-presidente Thomas Herrmann: “É uma tendência irreversível, na medida em que nós crescemos no exterior, e o Brasil, na economia, cresce muito menos”.
No momento, estão em andamento dois projetos que devem ampliar a atuação internacional da Renner. Um é a construção de uma nova fábrica no Chile, onde o grupo opera com a Renner Sayerlack, divisão de tintas para madeiras, e com a Renner Coatings, de tintas direcionadas à manutenção e acabamento de produtos industriais. A nova unidade substituirá uma das duas atuais no país. “Acreditamos muito no Chile. É um país estável e amigável para investidores”, revela Thomas. Consolidada no Chile e no Brasil, a divisão de tintas industriais da Renner parte, agora, para o plano de conquistar o restante da América do Sul. Além de abrir novos canais de comercialização, seja com centros de distribuição próprios ou terceirizados, a companhia quer entrar nos mercados de maior potencial via aquisições ou associações com empresas locais.
Na fábrica dos Estados Unidos está o outro projeto de crescimento – dessa vez, da Renner Sayerlack. A empresa ganhou a autorização para iniciar a produção de tintas à base de solvente, completando assim o portfólio até então limitado às tintas à base d’água. Um passo importante para quem ambiciona tornar global a divisão de tintas para madeira e, mais do que isso, converter-se em uma das líderes mundiais do segmento. Hoje, o volume de produção deste braço do grupo ainda é inferior ao dos grandes players. Apesar disso, no terreno da inovação e da tecnologia, a empresa gaúcha é referência. O motivo? A liderança mundial em tintas de madeira à base d’água, categoria que tem ganho incentivo de governos de todo o planeta por não causar danos ao meio ambiente. “Somos reconhecidos como um dos líderes na parte tecnológica. Fatalmente, isso irá nos levar a uma posição de destaque. Apesar de não sermos os maiores, somos vistos como um forte adversário”, revela Thomas. A Renner Sayerlack possui hoje dois centros de Pesquisa e Desenvolvimento, no Brasil e na Itália, financiados com 2,5% a 3% do faturamento total do grupo – que chegou a R$ 1,6 bilhão no ano passado.
Hora de descer do cavalo
Para alimentar o plano de se tornar um forte player internacional nas tintas para madeira e para indústria, a Renner Herrmann, porém, teve de tomar uma decisão delicada: desfazer-se da unidade de tintas decorativas. O desinvestimento, mais do que uma opção empresarial, significou abrir mão de parte de sua história. Afinal, as tintas, os esmaltes e os vernizes para casa estiveram na origem da empresa fundada por Arthur Koepke e pelos irmãos Waldemar e Leopoldo Renner – trio que, mais tarde, receberia o acréscimo de Olga Herrmann, irmã dos Renner, na sociedade. Foi também com as tintas decorativas que a marca Renner ganhou a cabeça do público. Com slogans marcantes, como “em matéria de pintura, quem dá as tintas é Renner”, e estampando sua logomarca na camiseta do Grêmio durante a vencedora década de 1990, além do conhecido e marcante “cavalinho branco” que projetou a companhia, o nome Renner virou sinônimo de tintas.
Todo o investimento feito em marketing se refletiu por muitos anos nos números: a Renner era uma das três marcas mais vendidas no país. Porém, a empresa avaliou que não conseguiria, devido às dezenas de concorrentes e à atuação de grandes multinacionais, manter-se competitiva. Uma autocrítica nem um pouco fácil, mas necessária, para que a empresa não parasse no tempo. “Não estamos acostumados a vender, e sim a comprar”, diz Thomas em referência ao histórico de aquisições e associações utilizado como estratégia de crescimento. “Descer do cavalo na hora certa é difícil. São reposicionamentos estratégicos, a empresa precisa se reinventar. Quantas empresas apagaram a luz, pois no momento ideal não fizeram o movimento certo?”, completa o CEO. Assim, a divisão de tintas decorativas foi vendida, em 2007, para a norte-americana PPG, que adquiriu também o direito de usar o nome – mas não o símbolo do cavalinho – por “algumas décadas”, despista Marcos, sem revelar o tempo exato.
“Tinteiros” e um pouco mais
Na época, aos 80 anos, a Renner Herrmann mostrava que não estava disposta a ficar presa ao passado. Investiu os recursos da venda na expansão das marcas de tintas para madeira e para indústria no mercado internacional, com a aquisição de fábricas no Chile e nos EUA. Assim, a Renner repetia em escala mundial a estratégia que, desde os anos 1960, a elevou de uma empresa regional a nacional. A permanente atenção às boas oportunidades acabou por encaminhar a companhia ao passo mais peculiar da sua trajetória: a fundação da Relat, empresa que transforma soro de leite líquido em pó. O projeto foi proposto por empresários do setor de laticínios em busca de uma solução para os milhares de litros de soro produzidos diariamente na fabricação do queijo, e cujo descarte ou encaminhamento aos suinocultores costumava onerar as queijarias. Quando transformado em pó, o soro pode ser utilizado para fabricação de massas, biscoitos e rações.
Mesmo sem experiência no setor, a Renner foi procurada por sua credibilidade, e resolveu arriscar. Investiu cerca de R$ 50 milhões na fábrica de Estação (RS), que começou a operar em 2011. Segundo Thomas, a Relat, que responde por cerca de 10% da receita do grupo, mostrou-se um porto seguro em meio à crise econômica que atingiu o Brasil. Afinal, o setor alimentício é bem menos sensível às oscilações econômicas do que o químico – este diretamente ligado à construção civil, e que costuma ser o primeiro a sentir o reflexo da redução do poder de consumo da população. A aposta se mostrou tão certeira que a Renner estuda expandir a produção da Relat, que hoje é de 70 toneladas de soro de leite em pó por dia. Apesar dos bons resultados, Thomas garante que não planeja diversificar ainda mais as atividades do grupo. “A Relat foi uma oportunidade, não foi planejado. Somos ‘tinteiros’”, afirma.
Tinteiros que chegam agora à quarta geração. Os filhos e sobrinhos de Thomas e Marcos Herrmann fazem parte do conselho acionário do conglomerado e, muito provavelmente, serão os responsáveis por dar continuidade à trajetória da empresa da família quando ela se tornar centenária. O caminho para alcançar a marca histórica parece já estar traçado. Primeiramente, pela filosofia que tem norteado a Renner desde sempre – a de ser uma “empresa familiar com atitude profissional” nas palavras dos Herrmann. Segundo, pelo passado e presente inspiradores da companhia. Para quem viu de tudo ao longo desses 90 anos, não é exagero afirmar que, em matéria de adaptação, resiliência e faro para oportunidades, quem dá as tintas é Renner.
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