Uberização
A despeito de eu me considerar um neoliberal no sentido mais estrito da palavra, um filme de Ken Loach sacudiu minhas convicções como nenhum livro ou artigo poderia ter feito ultimamente. Trata-se de "Sorry we missed you" (foto), em cartaz em várias salas de cinema parisienses, nesses dias que antecedem a greve geral convocada pelos sindicatos para o próximo dia 5, que vai paralisar a França.
Do que trata? Pois bem, Ricky e a esposa Abby vivem com um casal de filhos em Newcaste, Inglaterra, e encaram uma vida duríssima. Ela cuida de pessoas idosas em domicílio, muitas delas senis, e ele gravita em torno de um mundo de biscates que não parece acenar com qualquer perspectiva de amanhã. O sonho da casa própria se esfuma a cada dia e, de repente, chega a hora de mudar de rumos.
Mais precisamente quando Ricky vai trabalhar na PDF, uma operadora de logística que está na vanguarda da revolução do numérico. Disposto a enfrentar ao volante 14 horas de trabalho ao dia, seis vezes por semana, Ricky convence a esposa a vender o carro para que ele possa comprar a van de serviço, o que onera ainda mais o duro cotidiano de Abby, agora sujeita a ônibus.
Teoricamente sem chefe e, evidentemente, sem quaisquer direitos de ordem trabalhista, tudo parece se encaminhar bem. Só depende dele. Dotado de um navegador que o orienta quanto à logística de entregas, Ricky não tem tempo a perder. E até uma garrafinha leva no porta-mala porque, como logo constata, fazer uma pausa para urinar é um luxo a que não pode se dar com frequência.
Ocorre que as pessoas não são máquinas. Mesmo sabendo que mais tarde ele pode, em tese, alargar sua base de negócios, recrutando outros tantos Rickies periféricos como ele, eis que as intercorrências do dia a dia começam a apresentar uma fatura salgada. Ausentes da vida dos filhos, Ricky e Abby lidam agora com problemas novos. E a exaustão física e mental em nada ajudam a torná-los mais fáceis.
Sem uma rede de proteção que possa ampará-los em momentos de estresse e desespero, cada vez que Ricky tem um problema, o "sistema" prevê sanções monetárias em cascata que, ao fim e ao cabo, corroem seus suados proventos, e alimentam um ciclo vicioso sem fim em que a vida vira um cassino. E, como tal, todas as probabilidades estão de um lado da banca, levando a parte recalcitrante à ruína física, mental e financeira.
Não há dúvida que é um cenário inquietante. Da próxima vez que você ver esses rapazes levando às costas aqueles imensos caixotes de comida ao guidão de uma motocicleta, você vai parar para pensar no filme. Emblemático da desregulação do mercado de trabalho britânico, e agora universal, eis a arte nos ajudando a refletir sobre essa armadilha sinuosa da economia colaborativa. Não percam.
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