Schengen: um sonho curto
Quando os delinquentes do auto-denominado Estado Islâmico escolhem uma noite de sexta-feira para perpetrar seus atos bárbaros, alguns pontos não de todo adormecidos nos voltam à baila. Começo por um tão básico quanto contraditório. Quando se exumam os hábitos desses rapazes, não raro se encontram entre os raros livros, o popular "Islã para leigos" – uma série mundialmente famosa de vulgarização de conhecimento sobre vários tópicos do saber para não-iniciados. Portanto, eles são tão muçulmanos – ou fundamentalistas quanto querem parecer – quanto eu sou coreano. Qual seja: zero.
Nesse contexto, já são milhares os cidadãos franceses que estão sob a chamada ficha S – de "Surveillance" ou vigilância. A vida no estado democrático, contudo, não admite prisões arbitrárias ou encarceramentos sine die sem que tenham evidências que os respaldem. Como, de resto, seria comum no Estado Islâmico onde isso seria um aperitivo suave antes das decapitações. Tivemos falhas na interação dos serviços de segurança? Certamente. Mas não se pode desprezar o fato de que correr atrás de todas as pistas sugeridas pelos programas de inteligência artificial levaria as sociedades à virtual paralisia. Quando não à falência.
Nesse contexto, como se já não fossem graves o suficiente as muralhas que se erguem aqui e acolá em países europeus, de par com uma onda de resistência crescente aos refugiados sírios – e agora sabemos bem do que eles fogem –, o Tratado de Schengen, que permite a livre circulação de pessoas entre a ensolarada Lisboa e a distante Helsinque, se ressente crescentemente desse retrocesso. Só quem viveu o mundo da Guerra Fria, onde era impossível atravessar uma fronteira sem um exaustivo procedimento de admissão – isso quando a passagem era possível – aquilata o luto cidadão que isso representa. As barracas de há muito desativadas podem renascer ao lado de muralhas. E com elas, os guardas sisudos e os cães farejadores. Viveremos esse pesadelo?
Sobre a ação bárbara, já não resta muito a falar. Levada a efeito não por acaso na boca do fim de semana e no coração de grandes aglomerações, resultou na decretação imediata do assim chamado Estado de Urgência, um degrau antes da mobilização de guerra. De resto, o "script" se repete: manifestações de apoio ao povo francês, multidões a entoar a "Marselhesa", velas à porta das embaixadas e a dor estampada, especialmente na face dos jovens cujas vidas estiveram por um triz. No fundo, a pergunta que não quer calar: até quando? Pois eu digo, ninguém pode antever o fim desse embate da treva com a luz. Pensando bem, ele já vem de longe. Segundo alguns, desde a decretação da fatwa contra o escritor Salman Rushdie.
Numa nota mais pessoal, de todos os focos visados, este escriba ressalta dois que lhe são especialmente caros. Pois é na rue Charonne que fica o restaurante Chez Paul, uma excelente opção para quem gosta de pratos fartos com forte sotaque do terroir a preços que o depauperado real ainda pode suportar. "Hélas", nunca mais a rua bucólica será a mesma. O segundo local, o Stade de France, apesar das recordações amargas que trazem ao futebol brasileiro – tantas vieram depois –, está associado a noites festivas de confraternização e alegres embates desportivos.
Por ironia, saía na noite da sexta-feira 13 de um debate no bairro lisboeta do Chiado, onde o tema central era a incongruência do Fim da História, de Fukuyama. Segundo o pensador nipo-americano, a dissolução do coágulo da Guerra Fria marcara o ocaso dos conflitos civilizacionais. Nada de tão pueril. Nos dias seguintes, com o ressurgimento da teoria de o "Choque das Civilizações" de Samuel Huntington, as ruas respiram indignação nessa ponta extrema da Europa. Como bem lembram os lisboetas, Paris é a segunda cidade portuguesa do mundo.
Ora, a voz hesitante de François Hollande – um presidente fraco, mas que tem se comportado com dignidade nessas circunstâncias – mostra que a história está bem viva e que a França se vê numa encruzilhada. Ironicamente, tanta catástrofe pode levar o presidente à reeleição, o que seria castigar duplamente o grande País. Nesse contexto, não há taxista que não propugne abertamente que Saddam e Khadafi deveriam ter sido deixados em paz onde estavam antes que o Ocidente fosse testar a musculatura nessas plagas. Nessas horas, as ruas são de estranha sabedoria. Um deles chegou a traçar um quadro que é bem conhecido dos brasileiros: com o fim dos conflitos nos Bálcãs, um excedente de armas de grande calibre foi parar nas mãos dos delinquentes. Que aparato repressor pode fazer face a isso?
Por fim, como conceber que a cidade possa receber dentro de menos de duas semanas mais de cem chefes de estado de todo o mundo para a Conferência do Clima? Ademais, se os Estados Unidos se tornaram um país muito mais rigoroso e inóspito depois daquele setembro fatídico, como querer que seja diferente na França? Na beira do ralo, o Tratado de Schegen periclita. Tomara que saia do coma.
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