O pintor de Essaouïra
Ganhar dinheiro não é das artes a mais difícil. É claro que mantê-lo não é fácil, mas convenhamos que são dezenas de milhares as pessoas que diariamente transpõem o limite de ter mais do que precisam. O que há de enfeitiçador nas cédulas de Benjamin Franklin é que, assim como a cachaça para o dependente, a dose nunca é o bastante para saciar a vontade. Por que digo isso? Ora, porque coleciono ano após ano uma pletora maior de próximos e conhecidos que, antevendo a morte dos pais, ficam tresloucados com o quinhão que lhes caberá. E, ao discutir dinheiro, mostram uma face hedionda que ficou oculta durante décadas.
Nesse contexto, já acompanhei casos os mais horripilantes. Tempo desses um cliente me contava que os irmãos queriam se desfazer de uma empresa deficitária que pertencia à mãe e da qual ambos eram avalistas. Meu cliente foi encarregado de renegociar o passivo e de passar adiante a sociedade. Ora, diante de uma brecha da legislação, ele decidiu que poderia ser candidato a comprador. E anunciou o desejo. Assumiria o passivo e partiria para a exportação. A empresa que antes os dois mais velhos entregavam quase de graça para se ver livres do ônus, se transformou num maná. Para meu cliente – assumiram – não venderiam nunca. E não se falou mais do assunto. Os impostos só aumentam e ela continua inativa.
Outro exemplo de que o irracional não conhece limites vem de uma empresa paulistana que assessorei durante um processo sucessório. O ódio entre os sócios levava a que todos só fechassem as portas com um estrondo. Quando por fim chegamos à conclusão da avaliação e achamos que as coisas poderiam se encaminhar para um desfecho, o rapaz que causara a erosão do tecido afetivo entre os sócios, resolveu embargar a negociação. Isso em detrimento do que desejavam as três irmãs. Ocorre que ele era o preferido da mãe que, como herdeira, resolveu apoiar a estultice do filho. A empresa hoje sangra, perdeu o bom momento de venda, a mãe morreu e o caso se arrastará por mais 20 anos.
O episódio mais recente é talvez o mais prosaico. Imagine-se dois irmãos que são donos do mesmo imóvel. Um deles– rentista, opaco e conservador – julga seu dever deixar o aluguel do edifício para uma filha adotada. Muito louvável. O outro não tem filhos, sonha em morar em Essaouïra, Marrocos, sentindo os ventos alíseos. Pois bem, o primeiro considera essa aspiração ilegítima e insuficiente para justificar a venda do prédio. O outro – diabético e saturado dos dissabores da vida brasileira – sonha em viver seus últimos anos na cidade que amou. Ora, vendo desabar a possibilidade de travar a operação, o rentista submete a mãe a constrangimentos; ameaça advogados e alardeia que só se vende a casa por cima do seu cadáver.
Resumindo: é patético constatar que a falta de dinheiro gera disfunções afetivas no âmbito da família quase tão graves quanto aquelas que derivam do excesso. Certamente que essas questões estão também na base da frase mágica com que Lev Tolstói abre o livro Ana Kariênina: "Todas as famílias felizes se parecem. Cada família infeliz é infeliz à sua maneira". O grande geógrafo Milton Campos dizia que o fundamentalismo mais perigoso dos tempos que ele via se aproximar era o consumismo. Hoje, nas melhores famílias, por conta das aspirações materiais mais triviais, se chuta a canela, se ofende, se insulta, se humilha e se apedreja. Bem faz o pintor de Essaouïra. Quer ir para longe.
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