Um momento para lá de tocante

Entendi o drama de Gabriela
No fundo, percebi, que o que Bial queria mesmo naquele momento era se levantar e enlaçar aquela figurinha frágil e bela, que dizia coisas de muita força sem perder a ternura

Nessa última madrugada eu tinha chegado do restaurante japonês com vontade de fumar um charuto. Abri as janelas de casa, acendi um Robusto, folheei o noticiário dos jornais ainda fechados e ataquei a tradução de um livro, atividade que me dá muito prazer. No fundo, Pedro Bial e a atriz trans Gabriela Medeiros conversavam. Eu só estava prestando atenção pela metade e via que a linearidade do papo era quebrada pela exibição de trechos de duas novelas interespelhadas. De vez em quando, aflorava uma frase interessante, dava para crer que poderiam brotar pérolas no vão das conchas daquela menina de agreste doçura.

Foi então, num desses momentos em que os sentidos acusam alerta máximo, que eu parei tudo e me fixei na tela. Alguma coisa no não-verbal de Pedro traía um instante seminal. Obedeci ao instinto. Então ele leu uma passagem de grande beleza, pinçada pela equipe da pré-entrevista. O que ela dissera? Que dada sua condição de trans, se resignara a ser só um fetiche, uma fantasia do oco da noite. Quando o sol rompia no horizonte, tudo se diluía. Em suma, que ela jamais fora o dia, o sol de alguém, a claridade. Era só um amuleto no mundo da não-luz. Tudo isso sem quaisquer concessões ao vitimismo, ao panfleto, ao ativismo que tudo destrói e corrompe.

Meus olhos sumiram em duas poças. A cinza do cubano caiu na camisa branca. Pedro Bial ainda perguntou: "Você está lembrada de ter dito isso?" Não era uma pergunta fortuita ou retórica. No fundo, ele queria saber se ela se recordava do transe. Quem em seu estado normal faria poesia de material tão bruto? Então ele se agarrou aos andaimes para não desabar. No fundo, percebi, que o que ele queria mesmo naquele momento era se levantar e enlaçar aquela figurinha frágil e bela, que dizia coisas de muita força sem perder a ternura. Tateando para não cair, Pedro acenou com a esperança. Ela era jovem, haveria de um dia ser o sol na vida de alguém.

Foi um momento sublime. Fui até minha lavanderia e dei as últimas baforadas no charuto, tomando um gole de single malt, respirando o ar acre dessa cidade de ares tóxicos. Entendi o drama de Gabriela. Tivessem eles ensaiado mil vezes aquele momento da entrevista, em nenhum a emoção teria brotado com tanta beleza. Sou nascido no mesmo dia, mês, ano e hora de Pedro Bial. À distância, às vezes sinto as coisas como ele sente. Uma coisa é certa: poucas vezes a televisão aberta brasileira abriu o flanco para um momento tão bonito, tão cheio de significados, e que ele foi também pai, mãe, irmão, avô. E apresentador.

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Segunda, 16 Setembro 2024

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