Como você sabe que é primitivo?
De Paris (França)
Venho de um mundo de muitos pobres e poucos ricos. Posso ter vicejado a vida toda nos limites da classe média baixa e da classe média alta, com escalas mais ou menos duradouras na classe média média, das três a pior. Mas, fundamentalmente, venho de um mundo de pobres, talvez porque vindo a este mesmo mundo numa região subdesenvolvida, de um país subdesenvolvido, situado num continente também subdesenvolvido. Tão enraizada é essa miséria ancestral no inconsciente coletivo a que pertenço que sempre achei que os empregados de uma empresa devem ser profundamente devotados a ela, que devem dar tudo de si.
Nada me impressionou tanto quanto o senso de pertencimento dos japoneses às organizações. O zelo que devotavam ao conglomerado a que eles pertenciam; o rigor no cumprimento do dever e a dedicação muitas vezes excessiva, admito, que levava muitos deles a sacrificar sobremodo a família, e passar muito mais tempo com colegas de trabalho do que com ela, a "encher linguiça" no escritório para magnificar a dedicação. Japoneses à parte, para além do sustento, a empresa lhes dava identidade e dignidade. Num reflexo claro de minha indigência mental, é como se minha infância nordestina tivesse me impedido de aplaudir as evoluções do discurso capital-trabalho.
Quando minha vida profissional decolou, bem antes dos 30 anos, eu tinha galgado boas posições. Eu até que dava bastante à empresa, e me dedicava muito ao que fazia, mas mesmo assim, fiquei perplexo no dia em que soube que meu pacote previa 14 salários, um bônus generoso, seguro-saúde de primeira, um carro novo, combustível, compras de supermercado, vales refeição, hotéis e restaurantes segundo minha vontade pagos pela empresa no mundo todo e viagens internacionais em primeira classe. Não era nem em executiva, era em primeira. Dispensei o que pude disso, mesmo porque estava ali para trabalhar. E, secundariamente, para conhecer o mundo.
Talvez seja por isso que fico tão chocado ao ver milhões de franceses pendurarem as chuteiras e saírem de férias – depois de meses de inatividade forçada. Se dizem que você está muito doente, você procura tratamento ou vai passear? O bom senso manda que a pessoa procure tratamento antes que a enfermidade progrida em pleno passeio. Aqui, não. Saí-se de férias, ora, mesmo sabendo que o organismo estará necrosado quando da volta do culto ao Deus-Sol. E aí, como fazem? Ora, a questão do emprego é problema da empresa, e ela é um problema do Estado. Na cabeça desses franceses timoratos, o que o direito lhes garante vai muito além da gravidade da pandemia.
Mas se for legal, e pouco moral? Pouco se lhes dá. Para não dizer, nada.
Como disse há pouco a um amigo que me provocava a respeito: "...Os trabalhadores daqui lutam contra a aritmética com todas as armas. Acham que o Estado tudo pode, acham que há uma conspiração dos ricos (que eles chamam regressivamente de "patrons"), e que estes demitem por puro sadismo. O esforço do governo foi hercúleo para minimizar os efeitos devastadores dessa pandemia, e até o fim de nossos dias vamos viver à sombra dessas injunções. Não me espantaria se esses caras – que levaram à lona empresas por puro capricho entre dezembro e janeiro último –, aparecerem com uma pauta de queixas e pedidos, como se nunca tivessem lido o noticiário. "
Isso dito, eles já se preparam para "ir ao paraíso" e organizam manifestações contra o governo para setembro. É o mesmo como desferir uma marretada num moribundo. No meu mundo sonhado, que mescla meus ideiais de kibutznik com a ética de um samurai, eu ofereceria à empresa todo meu empenho, graciosamente, até que ela voltasse ao azul. Poderia até negociar um bônus de participação pelo soerguimento, mas teria muita vergonha de pedir férias e ir me esbaldar numa praia, sabendo que a produtividade vai cair a números indigentes com tudo o que pinta de negativo no horizonte. Nessas horas, bem se vê, venho mesmo de um mundo muito pobre.
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