Sobre trabalhar na padaria

Enquanto São Paulo se prepara para receber o frio anunciado para o fim de semana, resolvi que trabalharia na manhã desta sexta-feira chuvosa numa padaria simpática perto de casa. Nem bem terminei de ler os jornais e quando já me preparava para escrev...
Sobre trabalhar na padaria

Enquanto São Paulo se prepara para receber o frio anunciado para o fim de semana, resolvi que trabalharia na manhã desta sexta-feira chuvosa numa padaria simpática perto de casa. Nem bem terminei de ler os jornais e quando já me preparava para escrever este post, uma voz persistente me chamou a atenção. Perto do terraço molhado, um monólogo sem fim encadeava um assunto no outro. A queixosa era uma moça que poderia ter seus 25 anos. O rapaz, um pouco mais velho, provavelmente ligado à área de pessoal de uma empresa, ouvia-a atentamente e, de vez em quando, intercalava a paciência monástica com uma anotação. 

"Quando eu chegava, ela não me dava sequer um bom dia. Pelo contrário, torcia o nariz só porque eu estava uns minutos atrasada, no máximo vinte. Que culpa tenho eu se o trânsito estava ruim? Naquele dia, aliás, eu tinha acordado com pressão baixa. Meu marido até disse que eu não devia ir trabalhar. Mas eu falei que não, que iria mesmo assim, era dia de movimento. De outra vez, ela se queixou indiretamente porque eu adormeci no intervalo do almoço, com a cabeça recostada na mesinha. Não era por preguiça tanto é que eu pensei até que estava grávida. Pensei em prestar queixa na delegacia por assédio moral, mas seria prejudicial à imagem da empresa."

Nem bem o arrazoado estancou e pensei que pudesse voltar a meu pequeno mundo, um sujeito que não sabe dosar a voz começa a fazer uma verbosa preleção sobre a "era das reputações." Depois de discorrer sobre o quanto é ocupado, o quão se preocupa com o próximo e o tanto que é um ser virtuoso, com "quase nada de defeitos", segundo ele, eis que tenta impressionar um par de ouvintes pacientes sobre "fake news." Dando voltas em torno do mesmo tópico e sem saber como causar impacto, repete-se: "Na França, as crianças de jardim da infância já estão recebendo formação para checar a veracidade das informações." Vendo que não está impressionando, começa a falar de mapa astral. 

Bem atrás de mim, por mais que me esforce para não prestar atenção, uma sessão de terapia por Skype acontece a todo vapor. "Eu acho que ele não tem mais interesse em mim. Eu acho que ele está simplesmente acomodado nessa relação e vem fazendo tudo no automático. Já com a Marlene (fictício), a coisa é diferente. Começou com aquela coisa de vir a esta mesma padaria onde estou para tomar um café e desabafar. Depois ela disse que tinha quebrado o pé e me chamou para ir à casa dela. Pintou o primeiro carinho, depois o segundo. Como você sabe, terminamos ficando. Ela é prima-irmã dele, e isso é o que mais me preocupa. Vamos dizer que pelo menos gosto da família, não é?"

Pensando bem, é melhor ignorar a chuva e enfrentar as ladeiras para ir ao escritório. A pauta lá é menos diversa, mas lá vou ser mais produtivo. 

Veja mais notícias sobre Brasil.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Segunda, 16 Setembro 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/