Rua Fernando Mendes nº 7, Rio
Quando muito criança, devia ter uns dois anos de idade, morei no edifício Egypto, situado no nº 7 da rua Fernando Mendes, Copacabana, quase na esquina da avenida Atlântica, aqui no Rio de Janeiro. Trata-se de uma rua pequena, uma curta ligação entre a praia e a primeira grande paralela. Pois bem, estou na cidade desde ontem para participar de um seminário na UFRJ. Por feliz coincidência, instalaram-me na rua de minha primeira infância. Durante a última madrugada, fiquei um par de horas insone. Isso porque estou hospedado no hotel Windsor Excelsior, no 6º andar, bem diante do apartamento onde vivi há 57 anos, nos idos de 1960. Naquela época, sob quaisquer aspectos, o Rio era uma cidade alegre, gregária e feliz. Mas disso não posso testemunhar. Quando muito, reproduzo o que os adultos me diziam.
Lembro, contudo, de algumas coisas. Uma recordação nítida é de quando o hotel Excelsior recebia artistas de cinema e as pessoas se debruçavam no alto para ver as celebridades chegar ou sair. Entretidos com uma dessas contemplações, meus pais um dia esqueceram que minha estatura não permitia que chegasse à janela sem ajuda para participar da festa. Hoje me veio à mente o momento em que meu pai me levantou e deixou que eu visse lá embaixo a multidão de fãs e os flashes das câmaras que espoucavam. A diva do cinema vestia vermelho. Hoje, de certa forma, não foi diferente. Depois de ganhar do Vasco da Gama, o Corinthians chegou ao hotel, com torcedores fazendo algazarra.
Outra reminiscência clara está ligada aos passeios que dava com mamãe até a Galeria Menescal. Diz ela que, impressionado com a sonoridade da palavra, eu adorava lhe pedir que, no caminho, fôssemos ao açougue comprar alcatra. O nome desse corte me fascinava – e tenho bons motivos para achar que ela tem razão, pois até hoje gosto de palavras de origem árabe. Nas fotos de meu álbum de infância, algumas delas nos mostram no calçadão mítico ou mesmo tomando picolé nas areias da praia mais charmosa do mundo. Uma de nossas vizinhas de prédio, então de minha idade, teria fim trágico. Chamava-se Claudia Lessim Rodrigues e foi atirada da Avenida Niemeyer 20 anos mais tarde por traficantes de drogas.
Hoje, quinta-feira, lançarei na UFRJ um livro e vou falar das viagens no mundo contemporâneo. Por rara vez, o público não será formado por aguerridos jovens de negócios, interessados no aprendizado pragmático de como fazê-los em diferentes culturas, e como lhes interpretar os humores dos povos do mundo. Não. Dessa vez, são estudantes de Letras, e o enfoque será prazerosamente filosófico, quase artístico. Espero que consiga lhes deixar uma mensagem animadora quanto à necessidade de viajar e de entender a diversidade cultural humana como desafio de superação e fonte de fascínio.
Logo vou ter de sair, pois temos um longo caminho a percorrer até o Fundão. Só não sei se estarei em meu nível ideal de concentração. Nem tanto pela insônia que me assaltou na boca da madrugada. Tampouco pelo tema com o qual tenho boa familiaridade. A única dúvida recai sobre a visão daquele apartamento que vejo do outro lado da rua, agora sob a primeira luz da manhã. Se fecho os olhos, posso sentir o cheiro da colônia de meu pai e ouvir a voz de minha mãe. É todo um passado muito remoto de que guardo recordações que se fizeram nítidas e que associo às saudades mais enraizadas que um coração possa albergar. Mas vai ser uma boa conferência.
Amanhã ainda estarei aqui. E talvez as saudades mais agudas já estejam aplacadas. Pena que na minha conferência de hoje não haja grande espaço para que eu diga em algum momento que nenhuma viagem nos leva tão longe e tão fundo quanto a imersão que fazemos nos desvãos de nossa própria memória afetiva. Soaria pregação de um charlatão, à procura de uma nesga nos labirintos da psicanálise. Mas até que seria bom. Ontem percorri a rua várias vezes da Nossa Senhora de Copacabana à Atlântica. Dava a impressão de que meu pai surgiria de uma esquina, aos 30 anos, com o pão embaixo do braço.
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