PEC do teto: a regra possível no momento
Há uma indicação de política econômica em relação ao funcionamento dos bancos centrais que é a de "amarrar as mãos" da autoridade monetária quando ela não consegue manter a inflação baixa. No jargão técnico, essa recomendação significa a adoção de regras para disciplinar a condução da política monetária, em contraposição ao poder discricionário. Esse conselho é particularmente importante em países onde o Banco Central não tem autonomia e está mais sujeito a pressões políticas para manter as taxas de juros deprimidas. Mas vale citar que mesmo aqueles independentes e com reputação, como o BC inglês, acabam adotando algum tipo de regra para facilitar a coordenação de expectativas. Essa é a ideia por trás do regime de metas de inflação. Definir objetivos e, assim, ajudar a blindar a autoridade monetária de pressões políticas aumentando sua eficácia. A mesma ideia pode ser aplicada à política fiscal. Se um governo não valoriza a disciplina fiscal para garantir a sustentabilidade da dívida pública, então é estrategicamente interessante adotar regras para "amarrar as mãos" do tesouro nacional para discipliná-lo. Com normas institucionalizadas, fica mais fácil o governo não ceder a grupos de pressão por mais gastos. Muito países adotam regras fiscais. Pelas contas do FMI, eram 76 em 2012.
Desenhar políticas fiscais não é tarefa fácil. Uma regra muito rígida pode implicar perda de bem-estar social ao retirar flexibilidade do governo para agir em situações de contingência. Por exemplo, em um quadro de calamidade pública, é natural ocorrer aumento do gasto público. Além disso, regulamentos severos podem comprometer o papel anticíclico da política fiscal, que pode ser eficaz quando bem conduzida. Uma regra fixa de superávit orçamentário pode tornar a política fiscal pro-cíclica. Quando a economia está aquecida, o excesso de arrecadação se transforma em gastos maiores, estimulando ainda mais a economia, o que pode ser prejudicial para a dinâmica inflacionária. Já em um quadro de atividade e arrecadação fraca, os gastos precisam cair para cumprir a meta fiscal – o que pode acabar agravando o cenário econômico, caso a origem da crise não seja fiscal. Por outro lado, uma lei com muitas brechas estimula comportamentos oportunistas para elevar gastos. É desejável, por isso, limitar o uso dos recursos públicos em anos eleitorais, para minimizar a vantagem competitiva do candidato da situação. Vide o ano de 2014 no Brasil, quando o uso abusivo do instrumento fiscal deu vantagem indevida para Dilma, com consequências perversas para o país.
O Brasil já teve uma boa regra fiscal. A regra de superávit primário, que foi criada em 1999 pelo governo FHC, serviu muito bem ao propósito de reduzir a relação dívida/PIB. Naquele momento, havia preocupação com a solvência do débito, fazendo sentido utilizar uma regra fiscal fixa. Não havia espaço para política fiscal anticíclica. Esse é um privilégio de países com contas públicas mais saudáveis. Não era o caso. Ainda assim, durante as gestões Malan e Palocci, o gasto público teve um padrão mais anticíclico, desacelerando com o aumento do consumo das famílias – e vice-versa. Havia ainda alguma flexibilidade na política fiscal. Com Guido Mantega, foram colocadas em prática mudanças na orientação da política fiscal que ficou mais pro-cíclica. Conforme a receita fiscal crescia, elevavam-se os gastos ao invés de aumentar o resultado primário. A regra foi flexibilizada, tanto explicitamente, com metas mais modestas, como por meio de truques contábeis que reduziram a transparência das contas públicas. Paralelamente, o orçamento federal foi ficando mais rígido. Os gastos obrigatórios estavam em 12,5% do PIB em 2002 e atingiram 13,4% em 2014 e 14,5% no ano seguinte (com a contração de 3,8% da economia).
Há razões estruturais para o aumento da rigidez orçamentária. O envelhecimento da população eleva os gastos da previdência (eram 8,7 idosos por 1 adulto em 2000. Agora são 11,5, sendo que dentro de 15 anos essa razão deve ser de 19,5). Mas houve também decisões de expandir gastos de caráter mais permanente, como a elevação das metas de gastos com educação, a expansão de gastos sociais e, certamente, a política de alta do salário mínimo em termos reais, impactando a previdência e seguridade. Em outras palavras, a regra de superávit primário foi na prática inviabilizada por várias diretrizes que elevaram os gastos públicos. Há, portanto, regra fiscal, mas na direção errada e do pior tipo. Tornou a política fiscal mais pro-cíclica ao longo do tempo, pela vinculação de gastos ao PIB e à receita tributária, e aumentou a rigidez orçamentária.
A PEC 241 do Novo Regime Fiscal propõe o estabelecimento de uma regra simples: os gastos só poderão crescer em linha com a inflação. A norma valerá para as próximas duas décadas e passará por uma reavaliação depois de 10 anos. Ela produzirá um recuo importante, não só da dívida pública, mas também dos gastos do governo como proporção do PIB, o que propiciaria a necessária redução da carga tributária no Brasil. Como qualquer regra fiscal, a PEC do teto, como é chamada, tem suas limitações. Mas não há dúvidas que é necessário reformar o regime fiscal. Implementar uma nova norma, substituindo a anterior, é inevitável neste grave quadro de persistente desequilíbrio orçamentário e, portanto, de risco de insolvência da dívida pública.
A questão é se a regra proposta é adequada ou não, dentre as opções disponíveis e no contexto atual. A sugestão parece muito adequada, pois propõe enfrentar o elo mais fraco das contas públicas, que é o crescimento automático de despesas. Metas de superávit primário, no atual contexto, não seriam críveis no médio prazo, dada a dinâmica de gastos e a insegurança em relação ao comportamento da receita. E regras de teto para a dívida pública talvez não sejam adequadas neste momento de taxas de inflação e de juros ainda muito elevadas. A PEC 241 não é em si um instrumento de ajuste fiscal. Mas ao estabelecer limites de gastos, acaba levando à reavaliação de políticas públicas, bem como à busca de reformas estruturais. Sem isso, ela implode e deixa de ser crível. Daí a importância de ser complementada rapidamente pela reforma da previdência, que não poderá ser muito tímida.
Defender regras especiais para saúde e educação, no sentido de excluir esses gastos da PEC, não parece razoável, uma vez que o maior problema nesses setores é de gestão. Seria uma sinalização ruim e reduziria a efetividade da PEC. Em pouco tempo, ela perderia credibilidade. Enfim, neste momento em que a sociedade debate a necessidade de equilibrar as contas públicas e de ter maior cuidado com a alocação de recursos governamentais, a PEC pode ser uma forma simples e de fácil compreensão para iniciar essa agenda. Não há regra ótima. Há a regra possível no momento – até que esteja assegurada a trajetória de redução da dívida pública como proporção do PIB.
*Economista-chefe da XP Investimentos.
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