O Brasil em quatro tempos

Quinta-feira compareci a um animado bate-papo com o cientista político Carlos Melo, na sala aconchegante de um casal de amigos, no Itaim Bibi. Éramos talvez umas 30 pessoas, entre profissionais liberais, empresários e meia dúzia de jovens. No comando...
O Brasil em quatro tempos

Quinta-feira compareci a um animado bate-papo com o cientista político Carlos Melo, na sala aconchegante de um casal de amigos, no Itaim Bibi. Éramos talvez umas 30 pessoas, entre profissionais liberais, empresários e meia dúzia de jovens. No comando, o convidado deixou patente porque é considerado uma das vozes mais abalizadas do mundo acadêmico. De forma leve, porém didática, foi destrinchando um a um os fatores que mais turvam as perspectivas brasileiras de curto e médio prazo. Sem querer me delongar sobre seus pontos, frequentemente estampados em "O Estado de São Paulo", do qual é colaborador, a grande ênfase recaiu sobre a visível deterioração da liderança política no Brasil e no mundo. E sobre o esporte nacional que consiste em ver os candidatos a partir da viabilidade eleitoral, e não de sua plataforma programática. Como não concordar com ele?

Para ilustrar o primeiro ponto, ele se valeu de um argumento cristalino. Goste-se ou não de Gorbachev, FHC, Reagan, Thatcher ou Mitterrand, só um lunático negaria que eles eram muito superiores a Putin, Temer, Trump, May ou François Hollande, respectivamente. Em suporte ao segundo ponto, é notório que até pessoas sérias podem se engalfinhar em debates sobre o futuro político de gente como Bolsonaro e Dória, pouco se lhes dando que ambos sejam rematados noviços em formulação política, defesa, relações internacionais e economia, só para nos atermos aos aspectos mais prementes que compõem a liderança de que precisamos. Isso para não falarmos da complementação harmônica entre virtude, visão e conhecimento. Como sintoma do retrocesso, o professor observou que já não se fala de "baixo clero". Hoje ele impera no Parlamento como um todo. 

Nesse contexto, lendo as entrelinhas da mensagem, meu coração palpitou quando ele disse que nosso período mais venturoso para as manifestações artísticas teria sido o compreendido entre 1958 e 1975. Apesar dos anos de chumbo, foi nessa época que o Brasil teria vivido a pleno o melhor de sua vocação. Ora, esse interregno compreende os anos que vão de meu nascimento até quase a maioridade. A meses de completar 60 anos, pensei então em dividir minha vida em quatro blocos de 15. O que permeava minha agenda em 1958, 1973, 1988, 2003 e, é claro, a de 2018 que já assoma com mais perguntas do que respostas? Pois bem, comecemos então por 1958, ano em que o Brasil se sagrou Campeão do Mundo no futebol, desvencilhando-se do trauma que fora a derrota na partida final em 1950, diante da plateia lacrimosa do Maracanã. 

No plano pessoal, dizem que vim ao mundo em 29 de março – mesmo dia, mês e ano que o jornalista Pedro Bial –, lá em Garanhuns, Pernambuco, passada uma semana da entrada oficial do Outono, das estações a minha preferida. Reza a crônica familiar que só sosseguei quando me deram copiosas mamadeiras de leite de vaca e alguns defendem a tese que vem daí meu apetite lendário. O Brasil vivia os anos JK e por anos ouviria meu pai dizer que tinha verdadeira devoção ao Presidente pé de valsa, o "Nonô" de Diamantina, que, mercê dos esforços da mãe, uma jovem viúva, se formara em Medicina, aprendera francês e construíra uma linda carreira política que começou na prefeitura de Belo Horizonte e terminou em Brasília, cidade que construiu. Aos inimigos de Juscelino, a começar por Carlos Lacerda, papai devotava ódio iracundo.

Em 1973, aos 15 anos, a sorte parece que estava ao meu lado. De reserva feita para o voo da Varig que ligava o Rio de Janeiro a Paris, atendi um telefonema do gerente da TAP do Recife que me propôs viajar duas semanas antes, via Lisboa, em função de uma desistência. Como recusar a possibilidade de chegar antes à cidade com que sonhava acordado? Fiz muito bem em aceitar, pois graças a isso escapei da morte numa plantação de cebolas, a poucos quilômetros do aeroporto de Orly, destino a que não escapou o cantor Agostinho dos Santos. Em Paris, no baile do 14 de julho, vi brasileiros dançarem com júbilo. Isso porque no mesmo avião estava o odiado senador governista, Filinto Müller, o sicário de Prestes. Naquele momento, me dei conta de que o exílio deforma, mesmo as pessoas mais puras. No baile da Contrescarpe, o ator Yul Brynner bebia a meu lado. 

Em 1988, com 30 anos, eu era simplesmente o dono do mundo. Recém separado, pela primeira vez conciliava a combinação perfeita do ideário masculino de então. Livre para namorar profusamente – ainda que acautelado contra o perigo mortal da AIDS –, tinha dois cartões de crédito corporativos, três cartões de visita, um network global que eu visitava em poltronas de primeira classe e a resistência física de um cossaco. O Brasil era um caos, mas isso pouco me afligia porque o meu mundo era o da exportação. Meu maior prazer era ver um navio abarrotado de mercadorias que eu vendia para lugares tão díspares quanto Jacarta, Nairóbi, Panamá, Valparaíso e Baltimore. O presidente do grupo empresarial em que eu trabalhava se candidatara a governador de São Paulo e conhecera retumbante fracasso e desilusão. O pesadelo ficara para trás. 

Em 2003, precisamente no dia 1, acompanhava pela televisão a posse de um conterrâneo como primeiro mandatário do Brasil. Meu pai falecera em 2000 vaticinando que o futuro político desse homem levaria o Brasil a um tremendo buraco e que o populismo inevitável seria um contraponto grave ao que vinham sendo os anos FHC, que eu conhecera em 1977, em Cambridge, e cuja casa eu frequentava. Via Lula, um homem nascido em Garanhuns, sem as mesmas reservas que papai. É claro que era despreparado; é claro que era um mero intuitivo, mas o Brasil precisava passar por aquilo, paciência. Na posse, pelo canto dos olhos, devo ter enxugado uma ou outra lágrima furtiva por conta daquela trajetória que, a seu modo, reeditava o que tinha sido JK para outras gerações. Uma coisa era certa; aquele homem não iria manchar a biografia com filigranas. Meu Deus, como era suscetível ao erro de avaliação!

2018 ainda não chegou, mas não é difícil antever como o atravessarei. Perdido o glamour da vida que tinha aos 30 anos, completarei 60 embalado pela certeza de que deveria sim ter fixado residência na Europa muito mais cedo, quando os convites eram muitos. O país estará dilacerado por um combate fratricida em que os programas contarão menos do que as falanges anabolizadas de certezas dos candidatos ruins. Os bons – um ou dois – ficarão emparedados entre eles e, se eleitos, terão dificuldade de tocar a agenda sem incorrer nas nefandas coalizões. Pesando 20 quilos a mais do que deveria, atento á pressão arterial e meio amargurado com os destinos de um país violento e hostil, vou empreender um combate solitário para ver se atravesso o marco dos 70 anos, em 2028. Não será fácil, mas é meu dever tentar. Um dia, sei que o Brasil vai se organizar. Mas para mim, poderá ser tarde.             

Pois bem, foi tudo isso o que me passou pela cabeça enquanto o professor Carlos Melo colocava essas digressões dentro da assepsia da linguagem acadêmica na sala de meus amigos. Voltei para casa pensando em meu também bom amigo Fernando da Mota Lima que se suicidou no Recife há apenas um mês. Segundo ele, o Brasil continuava a ser um "fazendão" onde a agenda não saía do lugar. E tudo isso vinha lhe fazendo extremo mal. Pelo sim pelo não, tomei um Stillnox e dormi até que bastante bem. Mas despertei nessa sexta-feira de muito sol e céu azul em São Paulo louco para colocar esse arrazoado na tela e compartilhá-lo com vocês. Para mim, escrever continua sendo a forma mais prática e barata de exorcizar os demônios que assolam um país fragmentado e que, por alguns anos, pensei encerrar todas as possibilidades de felicidade pessoal e coletiva. Que nada!     

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Sexta, 22 Novembro 2024

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