Delegar e esquecer
Na época do grande boom da importação de têxteis nos anos 1990 – um movimento atabalhoado de Ciro Gomes que custou milhares de empregos a Americana (SP) e região, além de ter trazido sérios transtornos às indústrias do Vale do Itajaí (SC) –, nós nos valemos de um amplo network global para trazer para o Brasil uma gama variada dos fios e fibras pelas quais o mercado estava sedento. Em dado momento, como não podíamos estar em todas as partes ao mesmo tempo, contratamos alguns representantes comissionados para abrir negócios, acompanhá-los, incrementá-los e, como vinha acontecendo com nossos concorrentes, ganhar um bom dinheiro. E foi assim que nomeamos um vendedor para o interior de São Paulo.
Por razões óbvias, não vou dizer de quem se tratava. Mas era uma pessoa de bom trânsito no interior, conversador e bem educado, que, por alguma razão, estava meio deslocado profissionalmente, a despeito de a família estar no ramo com relativo sucesso. Ora, dar a mão a quem está precisando de uma oportunidade para mostrar serviço é uma estratégia inteligente e tudo tem a ver com meu perfil. Por uma questão de idade e por pouco faltar para sua aposentadoria, ele queria além das comissões e da ajuda de custo para combustível e almoços, um salário. Aceitei lhe pagar um salário mínimo, creio eu, e enquanto singrava mundo trazendo fios de poliéster e poliamida para o Brasil, esperava que ele fizesse bem a sua parte.
Certo dia ele me pediu uma reunião no escritório da Alameda Ministro Rocha Azevedo, nos Jardins. Tinha uma boa nova a anunciar. Logo imaginei que ele chegaria com um grande cliente, pronto para comprar alguns contêineres de acetato ou de fibra acrílica. Mas não era nada disso. Queria sim me informar que já distribuíra 175 cartões de visita com suas coordenadas de contato junto com uma cartinha em que se apresentava como nosso agente. Agora era uma questão de tempo até que esse esforço de disseminação germinasse. Se houvesse contato de alguns desses 175 prospects comunicados, que se lhe respeitássemos o pagamento da comissão devida. O trabalho estava feito. "Agora é com eles, Fernando".
Naquele instante, tive a certeza de que contratara o cara errado. Ele não precisou dizer mais uma palavra para que eu percebesse as razões pelas quais ele era considerado um ponto fora da curva pela família e, o que era pior, pelo mercado têxtil. Pessoa excelente, bom de papo e chegado a uma farra, convidei-o para almoçar e começamos ali a fazer uma operação de salvamento. "Meu amigo, você tem idade para ser meu pai e não quero ensinar-lhe seu ofício. Mas você tem mais é que chegar junto dos clientes, levar e trazer informação todo dia, cativá-los, saber dos passos da concorrência para, aí sim, ganharmos o espaço que almejamos. Esqueça a piscina todo dia. Sua semeadura horizontal é boa para o momento zero, mas fracassará". Foi o que aconteceu.
Quando íamos às fábricas e eu ou meu sócio arrancávamos um pedido a fórceps, honrando-lhe bem entendido a comissão, o mérito e o bônus eram todos dele, por assim dizer. Quando nada acontecia – e sempre podia haver a alegação de que o preço estava alto, de que o concorrente era mais agressivo –, o ônus era todo nosso que, a despeito de percorrer mundo atrás dos melhores fabricantes, não lhe estávamos dando armas do calibre devido. Se quiséssemos achá-lo, quase sempre estava em casa, no clube ou em alguma pescaria na represa. Nessas horas, inventava uma desculpa que justificasse o reembolso da despesa: "Trouxe aqui o comprador daquela tecelagem, lembra? Estou trabalhando, estamos trocando impressões".
Eu bem que gostaria de apresentar Bolsonaro a este gentil senhor, se ele ainda estivesse vivo. Seria uma aula magna para o Presidente sobre como não fazer as coisas. Vendedor ou estadista, ninguém pode se contentar em simplesmente fazer um encaminhamento e esperar que os dividendos caiam do céu como cocô de andorinha. Não há como. Tanto os negócios quanto a vida em família, tudo isso demanda monitoramento e carinho, aperfeiçoamento constante e investimento na confiança entre as partes. Caso contrário, o desmazelo sepulta os melhores sonhos, mesmo aqueles por todos tido como necessários e impreteríveis. Se Bolsonaro é bom de português, eu não sei. Mas Churchill ganhou a guerra porque soube usar as palavras.
Isso dito, a Reforma da Previdência clama pelo envolvimento do poder Executivo para ouvir as partes, conciliar posições e atender aos anseios de uma população de 210 milhões de almas que, como é de se esperar, não pensa da mesma forma. Sem o concurso do olho do dono, é ingênuo achar que o bom senso, o civismo e a consciência – o que quer que isso signifique isoladamente – demovam as pessoas da posição mais cômoda. Especialmente em se tratando de políticos. É fácil criminalizá-los. Mas o presidente tinha de ser um pouco mais maduro para saber que sem semeadura não há colheita. Afinal, para que ele foi eleito? Não foi para tirar selfies com pessoas que lhe são simpáticas. Foi para governar para todos os brasileiros.
Desliguei o meu representante ao cabo de um ano e ele foi meu bom amigo até a morte. Sempre que ia à cidade, tomávamos uma cerveja e íamos comer um churrasco na beira da estrada. Mas trabalhar, eram outros quinhentos. Oxalá Bolsonaro o tivesse conhecido. Veria que um ano foi um piscar de olhos diante do muito que poderíamos ter feito juntos. Fique atento, Presidente. Converse com seus amigos nordestinos e pergunte-lhes o significado da expressão "quem não pode com o balaio, não bote a rodilha na cabeça". É hora de encarar o batente. De falar com os adversários de ontem e esquecer um pouco de seus filhos. Se sua popularidade chegar ao nível da que chegou meu vendedor, o Congresso não o respeitará.
Agora já não há escolha. Faça as certas – ou alguém as fará por Vossa Excelência.
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