A dupla dinâmica beija a lona
Acho admirável quem ama a riqueza. Conheço pessoas muito ricas, que teriam com que sustentar todos os descendentes por três gerações só com o que construíram até hoje. E no entanto, acordam todo dia pensando em ganhar mais dinheiro. Para elas, fazer uma transação imobiliária, mercantil ou financeira é um imperativo ditado pela própria natureza. Ir para a cama sem ter somado à conta bancária alguns milhares de reais é impensável. Equivale à sensação de vazio que acomete o esportista que não treinou ou o samaritano que não fez o bem. Elas movem o mundo, não raro empregam milhares de pessoas e gostam de acercar-se de quem pensa igual. A adicção a este jogo é tão poderosa que entediam-se facilmente com as banalidades que alegram o comum dos mortais. A maioria dos leitores desta coluna jamais poderia ser como elas. Elas não têm tempo para ler articulistas.
Outras tantas gentes abominam o mundo de incertezas e de apostas que permeiam o universo dos muito ricos. Na falta de equipamento de fábrica para lidar com tantas vicissitudes, gostam da segurança. Se tiveram o privilégio de ter tido uma boa educação, vão ser profissionais liberais e/ou altos assalariados em geral. No caso do Brasil, não foram poucos os jovens egressos da classe média baixa e média que optaram por fazer concursos públicos e abraçar diferentes carreiras. Podem elas estar ligadas à magistratura, às cortes de contas, à diplomacia, às forças armadas e até ao legislativo, entre outras trilhas. O setor público, de forma geral, constitui também um vício. Âncora das certezas e da segurança, pesadelo previdenciário para a cidadania, a burocracia merece o escárnio do rico, mas pode representar sim o Eldorado para quem não nasceu para ser empreendedor.
O nó górdio dessa equação aparentemente tão fácil de resolver é quando aqueles que estão no serviço público, mercê das alavancas poderosas que lhes propicia um Estado extremamente perdulário e sabidamente incompetente, resolvem ombrear com os potentados do primeiro grupo. Ou seja, é quando um diretor de autarquia, um juiz, um político, um procurador, um auditor ou seja lá mais quem for, resolve "fazer um pé-de-meia", "somar mais uma aposentadoria", "garantir a educação dos filhos" ou "dar algum conforto aos pais". A psicologia, quando não a psiquiatria, ainda nos deve uma boa explicação sobre o efeito cruzado entre fiscais e fiscalizados, juízes e réus, virtuosos e celerados. Há uma síndrome que leva instâncias em todo o mundo a ceder à tentação de inverter os papéis e trocar fluídos corpóreos. Diante disso, a explicação talvez mereça mais três parágrafos.
Ora, tomemos o caso brasileiro das operações de combate à corrupção. De vez em quando, sabemos de réus que, embora em gozo da liberdade, pedem para acrescentar pormenores a seus depoimentos como forma de prestarem um serviço mais completo às instâncias que os indiciaram. É uma espécie de síndrome de Estocolmo. Em algum lugar dentro da alma competitiva do empreiteiro, ele não quer ficar atrás do promotor que o condenou. Ele também quer lugar no ódio dos virtuosos, estuário da paz de espírito perdida. O mesmo se dá quando delinquentes ou infratores são arguidos por juízes, promotores e procuradores. A narrativa da vida nababesca, a descrição de jantares, lanchas, hotéis e presentes faraônicos à esposa, mesmerizam e hipnotizam o braço da Lei. E de tanto ouvir centenas de depoimentos no exercício de sua profissão, eles podem querer desfrutar dos mesmos prazeres.
Assim sendo, podem-se apagar todos os áudios e registros escritos que envolveram a dupla Sérgio Moro-Deltan Dellagnol. Pode-se proibir qualquer menção ao caso em todo território nacional, entre a fronteira da Venezuela e a do Uruguai. Pode-se enaltecer até o fim de nossas vidas os méritos da repatriação do dinheiro público roubado, desviado ou afanado. Pouco importa. O que ninguém pode negar é que nossa dupla dinâmica, os simulacros dos paladinos Batman e Robin, estão sim envergonhados com sua própria conduta. Ora, quem se entrega ao serviço público tem de fugir de holofotes (como dizia o Ministro Teori), não pode sentir-se tentado pelo Beach Park, não pode pensar em construir empresas de fachada com as mulheres nem pode vibrar com a dieta de engorda da conta bancária tanto quanto as almas mercantilistas. Se fizerem isso, estão no lugar errado.
Mas finalizemos. Os méritos da Lava-Jato e de tantas outras operações é inegável. O esfarelamento do prestígio de procuradores e de um juiz-símbolo, contudo, se inscreve uma vez mais no imenso cipoal de calamidades que engolfam o Brasil. Até as instâncias mais confiáveis, até aqueles elementos que causavam burburinho nos aeroportos e que tiraram milhares de selfies ao lado de brasileiros ávidos por justiça e que gritavam "agora vai", pois bem, eles terminaram, por vias tortas, sendo pilhados com a boca na botija. Como? Ora, cedendo às tentações mais mesquinhas e terrenas, frequentando as mesmas cafuas que seus réus (porque se julgaram acima das filigranas legais com que ganharam a vida), tendo os mesmos lapsos de memória de que tanto riram. Pergunto: o que são 720 quilos de ouro diante de tão flagrante prova de fraqueza e vaidade?
Não há como terminar de outro jeito: pobre Brasil.
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