Sobre músicas patrióticas

Não sei bem o que se passa naquela esquina, mas sempre que há manifestações na avenida Paulista, isto é, quase toda semana, vejo uma concentração no mínimo polêmica na altura da rua Pamplona, ou seja, numa espécie de meio geográfico da avenida que, c...
Sobre músicas patrióticas

Não sei bem o que se passa naquela esquina, mas sempre que há manifestações na avenida Paulista, isto é, quase toda semana, vejo uma concentração no mínimo polêmica na altura da rua Pamplona, ou seja, numa espécie de meio geográfico da avenida que, conforme a surrada piada, é como o casamento, ou seja, começa no Paraíso e termina na Consolação. Voltando ao sério, por que é ali que se concentram os segmentos mais radicais das diferentes tribos políticas? Por outro lado, também me pergunto: e por que não? Não são os incomodados que devem se retirar? Que eu mude portanto de itinerário e faça um contorno por trás daquele trecho, pela alameda Santos, se quero evitar os exaltados do proselitismo desenfreado. 

Isso dito, o clima ontem por ali era desagradável para uma pessoa de minha geração. Não porque estivessem fazendo uma manifestação contra o STF, o que é perfeitamente compreensível. Mas o que você diria se visse centenas de adultos batendo continência, como se estivessem brincando como adolescentes, ao som de músicas que eles consideram patrióticas? Não parece meio regressivo? E que músicas são essas? As mais inverossímeis. O hino da Independência, o hino do Exército e aquela marchinha de Don e Ravel cujo estribilho ("Eu te amo, meu Brasil, eu te amo") ficou associado à propaganda militar dos anos 1970, no bojo do "ame-o ou deixe-o". Pode ser uma questão pessoal, mas tenho certa birra com isso e explico-a.  

Explico-a da seguinte forma. Criança, aos dez anos, tínhamos que ouvir e cantar pelo menos uns dois hinos no pátio do colégio antes das aulas. Não sei se minha vocação além-fronteiras me indispunha quanto àquela disciplina – a rebeldia está em mim, não há como negar –, mas o caráter compulsório me afastava de qualquer adesão emocional àquele espetáculo. O que não me impede até hoje de me emocionar diante de hinos verdadeiros – jamais diante de música de encomenda para efeitos de propaganda. Adoro o Hino Nacional e acho bonito o Hino à Bandeira, por exemplo. Mas que o do Soldado fique para os quartéis, muito embora o Cisne Branco, da Matinha, seja belo. Tudo vai do contexto da execução e da plateia, há de se ressaltar. 

Ademais dos acima, aprendi a gostar dos hinos do Japão (o curtíssimo Kimigayo), de Israel (Hatikva, ou a Esperança, emocionante até no nome), da França (dispensa comentários), da Inglaterra (God save the Queen) e até o da Alemanha (Deutschland über Alles, para alguns ainda eivado de conotações sinistras). Acho alegre e vibrante o hino da Itália e não tenho registro dos hinos da imensa maioria dos países. Gosto da "Internacional" e de algumas músicas sindicalistas como Bella Ciao, embora abomine vida sindical no geral. Quando morei na Alemanha, comprei um disco com as músicas dos deportados de campos de concentração e também a das fanfarras da juventude de Hitler. Fui recriminado em ambos os casos. 

Enfim, hino mesmo é "Aquarela do Brasil", que, de tão belo, jamais se prestaria à propaganda. Seja como for, sempre que houver passeata na Paulista, vou evitar a esquina da rua Pamplona. Talvez simplesmente eu esteja ficando velho e tenha perdido a paciência para exaltações fora do padrão do equilíbrio, do bom debate e do bom gosto. Se nunca fui panfletário, por que haveria de me tornar um agora? Certas músicas disparam gatilhos tão potentes quanto os perfumes. Basta perguntar– se pudesse – a um norte coreano o que ele sente quando houve aquelas choradeiras compulsórias, ou a russos e chineses que, coitados, durante décadas tiveram que aturar música de exaltação à sua força. Não, disso aí estou fora. 

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Sexta, 26 Abril 2024

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