Cidades do Danubio

Viena é imprescindível como marco zero, partida seminal de um tour pela Europa Central

Viagens curtinhas nem sempre são desejáveis, mas a verdade é que nos permitem apreender o diapasão dos lugares numa ótica comparativa, especialmente quando nos deslocamos por terra, e as cidades distam pouco umas das outras. Nesse contexto, Viena (foto) é imprescindível como marco zero, como partida seminal de um tour pela Europa Central. Cidade nuclear de um antigo império, lá nos sentimos como se um Habsburg de bigodes bastos e chapéu com pena de pavão, fosse desembarcar a qualquer momento de uma carruagem no pátio de Hofburg. A despeito de antenada na vanguarda, ainda é um lugar vetusto e solene, de arquitetura tão compacta que mais parece uma cidade cenográfica, um vilarejo Potemkin, onde nada há por trás das fachadas. A uma hora de trem dali, Bratislava, na Eslováquia, nos tira parcialmente da imponência, e, por mentalidade e ordenamento interno, acena com vagos vestígios de um socialismo que embolorou, mas que ainda é servido em prateleiras pelos garçons malemolentes, e pelas matronas que reinam atrás dos balcões de serviços públicos. Lá os sorrisos escasseiam, e reata-se com o provincianismo. Deve ser bom trabalhar na Áustria e morar em Bratislava.

Três horas de viagem e eis que algo muda. Chegar à estação de Keleti, em Budapeste, é desembarcar num paraíso que, felizmente, não se se oferece de cara, senão que precisa ser descoberto, camada após camada. Alguém estranhará as paredes fuliginosas, as passagens subterrâneas que lembram os tempos soviéticos, a altivez de um povo que sabe ser simpático, mas que também pode assumir um ar de confronto quando picado em seu espaço. A impressão de descaso muda quando se chega a uma margem do Danúbio e contempla-se o cenário escancarado do outro lado. De Peste, ficamos extasiados pelos altos de Buda, onde castelos e fortalezas assinalam um passado enfatuado e germânico. De Buda, adivinha-se a margem irmã irriquieta e mundana, boêmia e anárquica, cuja faceirice é disfarçada pelo mais belo prédio público do continente eurasiano, que é o do Parlamento - feito em renda de pedra. Pode a Hungria não ter a sorte da Áustria, cujos políticos são anônimos. Mesmo porque lá reina Viktor Orbán, um franqueado do radicalismo. Mas Budapeste já conheceu Adolf Eichmann, daí podermos dizer que está no lucro.

Como ninguém sai da Hungria sem sentir uma dor, as 6 horas que a separam em trem de Praga podem aplacar as saudades magiares, e temperar o viajante para um mergulho frontal numa das matrizes teuto-eslavas. Se é inegável que a capital tcheca pode ser tida sem favor como a cidade mais bela do mundo - desbancado as divas da Toscana, os paraísos do Alentejo, os vilarejos da estrada Romântica -, há de se deplorar que não tenha havido maior rigor no alvará concedido a comércios vulgares e aviltantes, no labirinto dos monumentos de tirar o fôlego. Mas saia-se do burburinho do epicentro e areje-se o espírito nas margens murmurantes do Vlatava, e uma inenarrável sensação de transcendência o tomará de novo de assalto. Tanta beleza restaurará uma nesga de fé na humanidade e nos dotará de complacência para com a massa que ainda acha que viajar é comprar imã de geladeira e empanturrar-se de compras anódinas, que desservem o propósito de qualquer viagem digna do nome. Isso feito, entregue-se à melhor cerveja do mundo numa taverna escura, cheia de madeira e de aroma de salsicha na grelha. Descubra, por fim, a Praga que frequentam os tchecos, não os pequineses.

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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