Vinhetas georgianas

No fim de semana, ao informar numa rede social que estava na Georgia, um amigo me escreveu: "Estando tão pertinho daqui, por que você não vem me fazer uma visita em Washington?" Foi então que lhe disse se tratar não do estado norte-americano, terra d...
Vinhetas georgianas

No fim de semana, ao informar numa rede social que estava na Georgia, um amigo me escreveu: "Estando tão pertinho daqui, por que você não vem me fazer uma visita em Washington?" Foi então que lhe disse se tratar não do estado norte-americano, terra da CNN e da Coca-Cola. A Georgia a que me referia era a do Baixo Cáucaso, berço de Stálin e, consequentemente, na franja de terras ao sul da Rússia, representada pelo Daguestão e Chechênia. Rimos muito do mal-entendido e ele confessou que mal ouvira falar do país. 

Então, vamos nos situar por completo. A Georgia, que, além dessas fronteiras, faz limites com a Turquia, o Azerbaijão e a Armênia, é um dos países mais fascinantes dessa parte do mundo. Um milênio atrás, o poder do soberano se estendia até o Mar Cáspio. Hoje, subtraída da Abcázia e da Ossétia em função do xadrez geopolítico dos russos, a pequenina Georgia é candidata a integrar a OTAN, o que a Rússia naturalmente não vê com bons olhos. De Tbilissi, a bela capital do país, faço um balanço do contexto intercultural da experiência.

a) Chega-se à Georgia a partir do Brasil por Istambul, logo com apenas uma escala. A cidade é bem conectada por voo direto com pelo menos dez capitais europeias. Tbilissi era há duas décadas uma cidade conflagrada. Como foi o caso, aliás, de boa parte dos países-satélites da Rússia que, apesar das discrepâncias culturais, se alinhavam todos sob a bandeira da URSS até o colapso da Federação. Assim, a Georgia conheceu anos turbulentos em que as facções disputavam o poder a bala. Da anarquia instaurada, pouco a pouco o país foi se reconstituindo;

b) Como dito acima, a Georgia ainda peleja para se desvencilhar do poderoso vizinho de cima que lhe conferiu mutilações territoriais e lhe faz constantes ameaças veladas. Daí o grande prestígio dos Estados Unidos. Quem vê Tbilissi no esplendor de sua vida noturna, regada ao vinho robusto produzido no leste do país, mal pode acreditar nesse milagre. Lindos prédios públicos mesclam modernidade com alguns vestígios da Era Soviética. Que são mantidos menos por nostalgia e mais como curiosidade antropológica;

c) A grande ironia vem do fato de que desse país oriental, de filiação quase asiática, saíram dois expoentes do poderio soviético em tudo que poderia haver de grandioso e sinistro. O primeiro foi Stálin, o homem que durante anos encarnou a vitória russa na Segunda Guerra Mundial, ainda que ao custo astronômico de milhões de vidas. O próprio Churchill reconheceu nele o estadista que tirou a Rússia do arado e levou o país à energia nuclear. No entanto, mesmo na Georgia, prevalece o processo de desconstrução do mito; 

d) Por qual razão? É bem mais impactante para os valores contemporâneos da humanidade o fato de que Stálin foi responsável por mortes, expurgos, exílios, humilhações e genocídios de toda sorte. Especialmente na Ucrânia, quando 4 milhões de pessoas podem ter morrido de fome. A lhe fazer contraponto nesse balé sinistro, pontificava outro georgiano de nome Beria. Esse último, responsável pela polícia secreta, é o segundo filho que a Georgia tenta renegar por sabê-lo instrumento da opressão e do terror de estado;  

e) Assim sendo, nenhum roteiro é tão polêmico quanto uma viagem a Gori, terra de Stálin. Lá está preservada a casa onde ele passou a infância, ainda hoje protegida por um toldo. E o subsolo onde seu pai exercia o ofício de sapateiro. Há um museu muito bem estruturado com algumas relíquias trazidas do Kremlin e um vagão de trem blindado onde ele viajava com todo conforto para os padrões da época pela imensidão do território soviético. Mas comenta-se que cada vez menos turistas aparecem e talvez eles venham a fechar o centro de visitação;

f) Georgianos são tremendamente hospitaleiros. Encruzilhada de civilizações em que ainda se mesclam russos, turcos e persas, eles valorizam como poucos a amizade. Em torno de mesas de madeira pesada e rodadas de pratos como "katchapuri" e "hinkale", fazem longos brindes de copo no ar, antes de entornarem um vinho potente, não raro com 14% de teor alcoólico. Apesar dos traços modernos de Tbilissi, prevalece uma tradição de comando masculino. Daí comentários de que a homofobia seja um pouco de regra;

g) Há, contudo, baixa distância de poder aparente. Vi o jogo Inglaterra x Rússia num telão de uma rua de pedestres ao lado do antigo Primeiro Ministro. As pessoas são afetuosas, mas nem sempre o inglês servirá para obter informações. Para as gerações mais velhas, o russo continua sendo a língua franca. Nos vilarejos, são muitas as parreiras a sombrear as casas e os moradores não parecem preocupados com nada que não seja ver a lenta passagem do tempo. País muito musical, a Georgia começa a se destacar também no cinema; 

h) O Brasil goza de um resquício de imagem de país feliz. Embora o futebol inspire mais pena do que orgulho, muitos ainda se lembram dos grandes times do passado e nos surpreendem a recitar o nome de jogadores, até mesmo os das equipes de 1982 e 1986 que, se não levaram a Copa, dignificaram a camisa. Como povo particularista, eles não têm pressa de ir direto ao ponto e prezam a empatia. Tipicamente multiativos, embora com um viés de reatividade, fazem um rematado esforço para mostrar as muitas belezas do país. Decididamente, recomendo. 

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Sexta, 26 Abril 2024

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