O desafio de viajar em família
Viajar com brasileiros é uma provação. Mesmo com familiares. E darei um exemplo pertinente do que digo. Certa feita encontrei meus primos em Paris. Não há grupo humano que eu ame mais nesse mundo do que aquela meia-dúzia de amigos-irmãos a quem estou ligado por profundo afeto; laços de sangue; incríveis afinidades e décadas de convívio. Por eles, faria qualquer coisa e nada do que me peçam é impossível. Eles sabem disso e não se cansam de dar provas de carinho e reciprocidade. Aquele encontro, assim sendo, entraria para a narrativa de nossa história familiar.
Pois bem, cheguei à tarde à Cidade-Luz, vindo de Berlim. Acomodei-me no mesmo hotelzinho onde eles gostam de ficar e esperei que chegassem da Grécia. No bar diante do hotel, localizado numa viela graciosa onde quase não entram carros, me regozijei ao vê-los descer a bagagem de dois furgões e se dirigirem em mais de dez para a recepção para os fastidiosos trâmites de admissão. Era inverno, tomei mais um copo de vinho tinto e fiquei à espera de que todos estivessem de chave na mão para só então fazer minha aparição. Na verdade, eles achavam que eu só chegaria no dia seguinte.
Então, apareci. Aconteceu então aquela explosão de beijos e abraços apertados que tanto surpreendem os passantes, especialmente os não-latinos. Aboletei-me no bar e disse que os esperava para jantar porque logo os restaurantes começariam a fechar. Subiram para um banho e logo estavam na recepção. Dei um ticket de metrô a cada um e, ordeiramente, seguimos para Montparnasse. De tão obedientes, dir-se-ia uma caravana de japoneses, fato que me causou alguma estranheza. Ninguém questionou as orientações do líder. Mas eu não perderia por esperar.
A noite foi memorável. Fomos comer mexilhões ao vapor num lugar agradável, a poucas estações de metrô de onde estávamos e todos se deliciaram com os diferentes molhos e as garrafas de Gewürztraminer gelado que acompanharam o repasto. Na volta, as esposas queriam naturalmente dar uma olhada nas vitrines ao passo que eles queriam mesmo chegar ao hotel e descarregar aquele cansaço que vinha do Peloponeso. Com brincadeira daqui e acolá, chegamos ao destino depois de alguns se queixarem do frio inclemente, de dores nas articulações, mas sempre louvando a beleza da noite.
No bistrô contíguo, tomamos o gole derradeiro de destilado antes de nos recolhermos. De todos, bem, eu era o mais tranquilo. Numa cidade que parece ser a minha, com excelente domínio da língua e com a agenda livre, eu ali estava para servi-los. Mas até isso pode ser difícil. E logo mais conto a razão. Ora, bem à hora de dormir, perguntei quando sugeririam que tomássemos o café da manhã de croissants com chocolate no terracinho do hotel. Que dissessem uma hora sensata, que todos pudessem cumprir para que eu organizasse um roteiro básico a partir dali.
Ora, todos foram unânimes: café da manhã às sete e partida às oito em ponto, ora essa. Ninguém estava ali para dormir em euro, pois queriam curtir Paris. Para mim, sem problemas. Li um bom livro e logo estava dormindo na temperatura baixa, sabendo que teríamos neve na cidade no dia seguinte. Na minha cabeça, imaginava como poderia surpreendê-los com pequenos becos de Montmartre e algumas das preciosidades de Paris que só muitos anos de rodagem podem dar. Vê-los felizes com os roteiros era minha principal aspiração. Quando poderíamos fazer de novo semelhante programa?
Quando deu 6h30 da manhã, eu me sentei a uma mesinha de canto, pedi uma infusão de tília e um sanduíche de queijo Camembert. Terminei esse introito, fui fumar um cigarro na calçada e esperar diligentemente que descessem para que talvez voltasse a me juntar ao grupo para comer as salsichas quentes, os ovos estrelados, um croissant e uma taça de chocolate. Entrementes, fui comprar o jornal. Passava bem das 9h da manhã quando os casais começaram a aparecer. Era divertidíssimo vê-los se sair com as desculpas mais estapafúrdias. Na verdade, estavam cansados e mereciam descansar.
Mas um dizia que não dormira bem porque o aquecedor estava demasiado quente e a outra reclamava de que o marido roncara em excesso. Todos tinham na ponta da língua uma desculpa para o atraso: a água quente estava morna, quase fria; o wi-fi falhara; outro recebera um telefonema do Brasil dando conta de que a tia Filomena sofrera uma isquemia – a décima em dois anos; uma prima se queixava do secador que não funcionava e outro bradava na recepção que o frigobar estava sem água mineral com gás e que tratassem de providenciar farto suprimento porque ele era dado a ressacas.
Quando finalmente todos estavam a postos para sair, o relógio marcava 10h34, um atraso já bastante razoável. Mas partimos rumo à Torre Eiffel, objeto de curiosidade de alguns. Foi então que um primo pediu uma trégua naquele passeio que já durava 10 minutos. Fazia muito frio e alguns de nós não estavam bem agasalhados e precisavam voltar ao hotel para reforçar o guarda-roupa. Os que estavam a contento, bem, esses podiam sentar um pouco e se aquecer com um copo de vinho enquanto aguardavam a parte da delegação que enregelava. Eu era todo calma e compreensão.
A relargada só aconteceu às 11h, no exato momento em que a neve densa e pinicante começou a castigar nossa pequena delegação. Foi hora de alguns entrarem em lojas da região para comprar gorros adequados para cobrir parte do rosto e as orelhas. Ninguém perdera o bom humor até então. Até eu, o menos afeito a esse tipo de caravana, achei graça porque estava disposto a curtir a companhia deles. O fato de estar em Paris pouco modificava a dinâmica. Mas, convenhamos, estivesse com estranhos, bem diferente seria minha reação. Aquilo era um show de desorganização. Um alemão teria enlouquecido.
Nesse contexto, como dizia um primo mais velho, espécie de chefe da delegação, "o luxo da viagem é a companhia". O resto era só paisagem, o que me pareceu uma bonita fórmula. O fato é que conseguimos descer os Champs-Elysées em direção à Madeleine com relativa tranquilidade. É claro que não havia como convencer nossa delegação de que tínhamos mais a ganhar se deixássemos os interesses individuais para depois e que, por enquanto, focássemos no que era de interesse geral. Era apelo vão. Não se passavam 5 minutos sem que um sumisse em alguma galeria.
Quando menos esperávamos, alguém se esgueirara para dentro de uma loja de perfume ou ia ver uma camisa especialmente atraente. Lá pelas tantas, optamos pelo bom senso. O grupo masculino se aboletou numa casa de vinhos perto da Madeleine e a bancada de feminina – mães, filhas e avós – saíram para as compras nas Grandes Lojas que ficam na região. Ao chegarem, já à noite, cada uma sobraçava enormes sacolas que foram acomodando nos sofás cobiçadíssimos do local àquela hora. O garçom chegou desesperado, a mesa vizinha estava reservada, que guardassem as compras entre as pernas.
O que quero dizer? Ora, um grupo de nordestinos generosos e multiativos difere bastante daqueles japoneses que, ordeiramente, seguem uma guia com uma bandeirinha como se fossem colegiais. E que só se dispersarão mesmo na hora em que for dado sinal verde para tanto. Mesmo assim, comprarão as mesmas coisas e nos mesmos locais. No nosso caso, de divertida bagunça, a vontade do indivíduo prevalece sobre a do coletivo; mas o coletivo se mobilizará em torno de uma falha individual. A gestão do tempo é circular, quase caótica. Jamais ativo-linear. Predomina a informalidade e o padrão afetivo.
Tudo isso pode parecer muito familiar, quase banal, para a maioria dos brasileiros que me leem hoje. Em meu caso, devo confessar que experiências similares são grande exceção. Sou dos que acham que quando a gente viaja em grupo, o grupo é o foco e a compatibilização de seus interesses vai além de qualquer prioridade ligada ao local visitado. Quando a pessoa viaja só, ela reata com seu eu profundo e poderá se visitar enquanto tem as paisagens como cenário de reflexão e relaxamento. O bom é que há ocasiões para ambas as experiências nessa vida.
Quando eles foram embora para Barcelona, porém, fiquei com um nó apertado na garganta. Sentiria saudades de cada um daqueles caprichos. Mas bastaram algumas horas para que o DNA de lobo solitário voltasse a imperar e que as saudades se transformassem, em certa medida, num grande alívio. Mas o certo é que anseio pelo dia em que poderemos reeditar um programa parecido, com direito ao mesmo caos e algazarra. Afinal, não sou oriental, gosto muito de todos eles e elas, e sei que sair da bitola estreita das viagens de reflexão é um dos prazeres da vida. Sábado último, o tema dominou nossa conversa.
Veja mais notícias sobre Tecnologia.
Comentários: