Mais um subproduto inevitável do sucesso da Apple
A desaceleração do crescimento das vendas do iPhone, principal produto da Apple, e a existência de prognósticos semelhantes para suas receitas e lucratividade acenderam os holofotes sobre os principais impulsionadores de crescimento da marca. A grande preocupação consiste em saber se a lealdade dos clientes e a fidelidade ao “ecossistema” da empresa, ou seja, a seu conjunto de produtos, estão sendo testadas por concorrentes que oferecem produtos mais baratos e tecnologias mais flexíveis, como a plataforma Android. De acordo com especialistas, a Apple terá de reformular suas estratégias globais, sobretudo nos mercados das economias emergentes, tornando-se menos avessa ao risco da inovação e aceitando a realidade de que companhias veteranas não podem sustentar taxas elevadas de crescimento e domínio de mercado para sempre.
Nos últimos resultados trimestrais divulgados em 26 de janeiro, a Apple informou que as vendas do seu carro-chefe, isto é, sua linha de iPhones, nunca haviam crescido tão lentamente desde seu lançamento em 2007. As vendas de iPhones, que respondem por cerca de dois terços das receitas, cresceram 0,4%, isto é, foram 74,7 milhões de aparelhos vendidos em comparação com o mesmo período há um ano, ao passo que a previsão dos analistas era de 76,5 milhões. A empresa estimava também o crescimento mais lento das receitas em 13 anos para o atual trimestre: em torno de US$ 50 bilhões a US$ 53 bilhões. Já os analistas calculavam algo em torno de US$ 55,6 bilhões. A lucratividade também está em queda, uma vez que o valor das margens brutas ficou abaixo da estimativa dos analistas, que era de 39,9%.
Ameaças em “todas as direções”
“Nem todo o mundo que está chegando agora ao mercado vai optar pela Apple; na verdade, as pessoas estão trocando a marca por outra. A concorrência feita pelas rivais da Apple é mundial e vem de todas as direções”, analisa Murillo Campello, professor de administração e finanças da Faculdade de Administração Samuel Curtis Johnson da Universidade de Cornell. Por exemplo, o consumidor sul-americano está mudando para aparelhos da Samsung e, na China, onde a Apple tem o grosso das suas vendas, as pessoas estão mudando para grifes nacionais mais baratas. “Talvez a Apple não esteja entendo que os mercados locais […] têm necessidades próprias, e que ela talvez não possa fazer um único produto que atenda às necessidades de todos. A empresa precisa refletir seriamente sobre o que deseja alcançar na nova economia”, aconselha Campello.
As vendas do Apple Watch também estão abaixo das expectativas, conforme mostram os relatórios de mercado, embora a Apple não tenha divulgado esses dados. Isso indica a existência de uma ameaça ao ecossistema da empresa, observa David Hsu, professor de administração da Wharton. “A Apple aposta na conquista de usuários para uma parte do sistema; feito isso, eles se sentirão mais à vontade no restante do ecossistema da empresa. As coisas, porém, não estão acontecendo com a tranquilidade que a Apple imaginava”, sublinha Hsu.
Peter Fader, professor de marketing e diretor adjunto do Projeto de Analítica do Cliente da Wharton, não crê que haja uma ameaça ao ecossistema da Apple ? por enquanto. “Gostaria que houvesse uma ameaça séria ao sistema blindado da empresa ? em geral, é ruim para o consumidor que seja assim. No entanto, o consumidor não se dá conta disso, e parece mais feliz do que nunca em ter suas opções limitadas ao que um punhado de gente em Cupertino lhes oferece. Portanto, não dou muita importância aos sinais de advertência que parecem estar surgindo”, ameniza Fader.
Crescimento insustentável
A Apple se conformou ao ver que seus índices elevados de crescimento são insustentáveis. “O problema básico é a relutância da empresa em aceitar a inevitabilidade matemática e econômica da desaceleração do índice de crescimento à medida que as empresas evoluem. Elas podem continuar a crescer, mas o índice de crescimento recuará”, explica John Percival, professor adjunto de finanças da Wharton. Percival reitera ainda que a Apple foi “estupenda” ao se conservar um passo adiante da concorrência ? inovando sempre ? que, inevitavelmente, copiaria seus produtos. “Contudo […] manter os mesmos índices de crescimento significava que cada inovação teria de ser muito superior à inovação antecedente. Trata-se de um processo que não poderia durar para sempre”, argumenta Percival.
A Apple é vítima do seu próprio sucesso, opina Kevin Werbach, professor de estudos jurídicos e ética nos negócios da Wharton. “O problema é que ela topou com a lei dos grandes números. Como é possível continuar a crescer e ter lucro quando a empresa, de acordo com alguns dados, já é a mais bem-sucedida da história do capitalismo?”, questiona. Werbach se surpreende que o futuro da Apple esteja sendo questionado depois que a companhia teve um trimestre com lucro líquido de US$ 18 bilhões. Além disso, a grife continua a dominar o mercado de smartphone. “Somente dez países do mundo têm um volume de reservas em divisas estrangeiras maior do que a Apple tem contabilizado em seus livros”, acrescenta o especialista. A empresa tinha mais de US$ 251 bilhões em caixa no último levantamento feito.
“Nenhuma empresa pode crescer e dominar para sempre, principalmente em mercados de tecnologia em que as mudanças são rápidas”, observa Werbach. Ele lembra, ainda, que o “hipercrescimento” da Apple nos últimos anos esteve atrelado inextricavelmente à China, tanto como fonte de fabricação quanto como mercado de consumo em massa. “A instabilidade atual que se observa na China e o receio de que seu crescimento sustentado não se mantenha deverão afetar as perspectivas da Apple no médio prazo. Mesmo que a China desaparecesse, ainda assim a Apple teria um negócio fantástico”, analisa Werbach.
Novas ameaças
Hsu nota que o lento crescimento das vendas do iPhone e a inabilidade da Apple em fazer avançar o Apple Watch têm provocado receio na comunidade de investidores. “Aparelhos Android muito mais baratos oferecem a mesma funcionalidade que os aparelhos da Apple. O consumidor está de olho nessa diferença marcante”, alega. Hsu ainda argumenta que essa situação é um problema para uma empresa que conta com a lealdade do cliente e trabalha com preços mais elevados. “O investidor talvez veja o declínio do crescimento das vendas do iPhone como o prelúdio de um possível ponto de virada descendente para a marca”, opina. Nesse cenário, Hsu afirmou que esperava que a Apple refletisse de forma mais ampla sobre sua estratégia global e seu posicionamento em relação a plataformas e aparelhos muito mais baratos. Campello acrescenta que a Apple precisa também revisar suas estratégias, especialmente no que diz respeito ao mercado chinês. “É provável que daqui a seis meses as vendas da Apple no gigante asiático não sejam tão boas devido aos problemas por que passa a economia e à força do dólar. Não dá para fazer mágica com o mesmo telefone, a menos que ele venha acompanhado de uma inovação disruptiva, o que a empresa não foi capaz de proporcionar”, alerta.
Clientes mais jovens querem flexibilidade e preços baixos, de acordo com os especialistas. “A ideia de poder personalizar, mexer no aparelho, criar um celular próprio que atenda aos seus interesses e gostos é um atrativo para a geração mais jovem. Nesse aspecto, a proposição de valor, ou imagem da marca da Apple, é menos irresistível, principalmente se o preço do produto for elevado”, recorda Hsu. “A nova geração quer mais personalização e preços baixos ? e a Apple não está em condições em oferecer nenhuma das duas coisas”, emenda Campello.
Fader concorda que a Apple precisa reelaborar suas estratégias de inovação para abastecer os mercados de smartphones mais baratos, especialmente na China e na Índia. “Contudo, essa não é a primeira vez que a empresa atinge um platô em seus esforços de inovação ? e nós quase sempre erramos”, assinalou. Tim Cook, CEO da Apple, certamente não vê razão para alarme nos últimos resultados. “Não vivemos em função dos 90 dias do trimestre e não investimos em função deles. Estou plenamente convencido de que as coisas que estamos fazendo são corretas e os ativos de que dispomos são enormes”, afirmou Cook ao Wall Street Journal depois da divulgação dos resultados.
Werbach entende que é natural que surjam indagações em torno do crescimento persistente da Apple em vista do amadurecimento dos mercados de smartphone e tablets como também a incerteza persistente sobre a escala de categorias mais novas de mercado, tais como a do relógio inteligente e da tevê conectada. Contudo, a Apple é um negócio extremamente bem-sucedido. “Steve Jobs não está mais entre nós orquestrando tudo como se fosse um bruxo com poderes mágicos, mas é importante perceber que Cook chefia uma companhia muito mais poderosa e dominadora do que Jobs teve a oportunidade de chefiar. A Apple sob o comando de Jobs teve um impacto muito além da sua escala financeira, mas a Apple de hoje tem uma escala financeira que somente umas poucas empresas do mundo têm condições de igualar”, reitera Werbach.
O que a Apple deve fazer a seguir?
O grande desafio a longo prazo da Apple consiste em “migrar gradualmente do hardware para o software e serviços”, aposta Werbach. “A Apple até agora é a única exceção extraordinária que prova a regra da comoditização do hardware de TI e do setor de comunicações. O software do seu sistema operacional é fantástico, mas o aplicativo da empresa não está no mesmo nível. Ao entrar em mercados desconhecidos, como o de carros e de realidade virtual, em que talvez não tenha uma vantagem natural como designer de hardware, a inovação do software será algo cada vez mais crítico”, alerta Werbach ao lembrar que crescer demais pode acarretar uma série de problemas. “A escala da Apple hoje é uma de suas maiores vantagens, mas pode, ao mesmo tempo, se tornar um estorvo. A marca talvez seja a única capaz de colocar 800 pessoas para trabalhar em uma câmera de smartphone, como geralmente se diz que ela faz no caso do iPhone, mas a história da indústria de tecnologia sempre se caracterizou pelo fato de que empresas surgidas do nada, porém ágeis, derrotam as mais antigas e dotadas de muito mais recursos”, destaca.
Segundo Fader, a “Apple deveria começar a migrar ? lenta e cautelosamente ? de uma mentalidade essencialmente centrada no produto para uma estratégia mais voltada para o cliente”. Embora tal procedimento traga algumas vantagens, não é algo que deva acontecer da noite para o dia ou mesmo no futuro próximo. “A exemplo da IBM, Microsoft, Google e outros pesos pesados que dominam a indústria de tecnologia, a Apple enfrenta o tempo todo o desafio de saber se haverá um próximo ato para ela. O negócio do iPhone levou a Apple à estratosfera das empresas globais, e é incrivelmente difícil encontrar outra oportunidade dessa mesma escala”, lembra Werbach.
Hsu sugere que o momento é oportuno para que a Apple libere sua estratégia de inovação. “É preciso diversificar, fazer apostas. É um bom momento para fazê-lo ? não quando existir crise severa, mas em um período em que você tenha condições de financiar experiências diferentes, quer sejam elas internas à empresa ou por meio de parcerias”, aconselho. Na visão de Hsu, seria vantajoso para a Apple se ela fosse menos avessa ao risco da inovação. “A empresa tem US$ 250 bilhões no banco, por isso não precisa ser tão conservadora e controladora”, argumenta. Hsu também observa que o Facebook e a Alphabet, matriz do Google, são muito mais progressistas nas experiências que fazem com futuros impulsionadores de crescimento. “A Apple precisa estar disposta a atenuar um pouco o aspecto do controle, que é uma herança de Steve Jobs […] e não ter tanto receio de experimentar”, aconselha.
Com relação à célebre confidencialidade que cerca os trabalhos em andamento nos laboratórios da empresa, Fader é enfático: “Em se tratando de inovação pura e simples, está certo manter-se calado. Contudo, há uma questão à parte: a Apple não sabe usar eficazmente seus dados do cliente. É por isso que a empresa defende leis de privacidade rigorosas ? e com isso tenta limitar as enormes vantagens que os outros membros das Cinco Grandes (Google, Facebook, Microsoft e Amazon) têm sobre ela. Essa desvantagem da Apple pode realmente prejudicá-la.”
Amadurecendo com elegância
Percival chama a atenção para uma questão mais ampla do debate em torno da razão pela qual o crescimento da Apple desacelerou. “Trata-se de saber como foi que a companhia permitiu que isso acontecesse por tanto tempo. Creio que parte do problema da empresa se deve à cultura do Vale do Silício que tem paixão pela inovação e esse traço cultural produziu empresas incríveis e de crescimento avançado, mas pode se tornar um problema depois que elas amadurecem”, alerta. “A Apple e o Vale do Silício sempre desdenharam de empresas como a Microsoft e a IBM, que tentaram, com algum sucesso, administrar com elegância a maturidade através de uma atenção maior ao executar sua estratégia. A Apple menospreza a Samsung porque o sucesso da empresa se deve, primeiramente, não à inovação, mas à execução. Empresas do Vale do Silício, como a Hewlett-Packard, não fizeram com elegância essa transição. Grandes empresas precisam aceitar o fato de que a maturidade é inevitável, mas que é possível adiar o declínio concentrando-se enfaticamente na execução”, acrescenta Percival.
*Serviço gratuito disponibilizado pela Wharton, Escola de Administração da Universidade da Pensilvânia, e Universia, rede de universidades que conta com o apoio do Banco Santander.
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