Sim, eles podem

Na sala 402 do Ministério do Trabalho e Emprego, às margens do Rio Guaíba, no centro histórico de Porto Alegre, o auditor Rafael Faria Giguer ouve explicações de uma empresa – mais uma – sobre por...

Na sala 402 do Ministério do Trabalho e Emprego, às margens do Rio Guaíba, no centro histórico de Porto Alegre, o auditor Rafael Faria Giguer ouve explicações de uma empresa – mais uma – sobre por que não é possível cumprir a lei de cotas para pessoas com deficiência, os chamados PCDs. De um modo geral, os argumentos que chegam ali, no “Núcleo Igualdade no Trabalho”, repetem-se – a empresa procura, mas não encontra pessoas com deficiência em condições de realizar as tarefas. Não, ao menos, na proporção exigida por lei – que manda reservar de 2% a 5% das vagas, conforme o número de funcionários. Com ar enigmático, o auditor fiscal de 28 anos escuta as justificativas da empresa. Algumas ponderáveis, outras não – como a de que é impossível encontrar alguma tarefa adequada para surdos, ou portadores de síndrome de Dow, ou cegos.  Quando a conversa cai nesse ponto – que Rafael define como “o discurso da incapacidade” – é que ele por vezes resolve deixar claro ao interlocutor o porquê de estar usando óculos escuros.

Ele tem menos de 5% da visão.

E só resolveu fazer concurso público para o Ministério do Trabalho depois de peregrinar por áreas de RH e perceber que seu diploma de engenheiro e sua carteirinha do Crea não seriam o bastante para colocá-lo em uma função compatível  com a titulação – lugar de cego é, no máximo, em algum cargo de nível médio na área administrativa.

Agora, sente-se em uma missão: evitar que outros passem pelo que passou. “Quando a empresa vem aqui dizer que não contrata pessoas com deficiência porque têm limitações que as impedem de realizar qualquer trabalho, é importante saberem que aqui, do outro lado da mesa, está um fiscal que é deficiente visual”, sublinha.

O “discurso da incapacidade” de que ele fala o remete a uma outra lembrança. Precisando de um laudo, foi ao médico.

- Posso te aposentar por invalidez, disse o médico, depois de examinar Rafael.
- Não... Eu trabalho.
- Trabalha? Com o quê?
- Sou fiscal do trabalho.
- Mas... como?

A sala de Rafael Giguer é colada à de uma referência nacional na matéria, a auditora fiscal Ana Maria Machado da Costa. Formalmente, ela é a “coordenadora do Projeto Inclusão de Pessoas com Deficiência no Trabalho”, mas, pela imagem que projeta nas empresas fiscalizadas, o crachá poderia identificá-la como leoa da causa. Ana é uma das mais destacadas precursoras de um trabalho que está mudando a realidade de milhares de brasileiros que muitas empresas – e em certos casos até as próprias famílias – fingem não ver.

A expressão parece dura, mas não é exagerada quando se considera o que aconteceu – ou melhor, o que deixou de acontecer no país.  Pense em 1991, ano em que a internet era coisa de iniciados e o telefone celular era um trambolho pesado e rudimentar ostentado como sinal de riqueza em um Brasil que testemunhava o primeiro impeachment de sua história. Pois é, vem de lá, daquele tempo, a lei que estabeleceu cotas para o que, na época, chamava-se “pessoas deficientes”.  Passaram-se 25 anos e, segundo Ana, ainda há muito a avançar nesta área. “As pessoas com deficiência ainda são invisíveis para a sociedade. Estão em casa, nas Apaes, muitas vezes sem perspectiva. Nosso papel é tornar essas pessoas visíveis para empresas, para famílias, para as escolas de formação profissional.”

A arma dos fiscais é a multa, mas este é o último recurso – reservado a empresas que não cumprem o prazo de dois anos que recebem para se adequar à lei de cotas.  O que realiza Ana não é multar. Nem, tampouco, ver empresas fazendo o estritamente necessário para “cumprir a cota” e escapar da autuação. É perceber que a companhia, como um todo, comprou a ideia da inclusão. Não é um processo simples, mas, a 100 quilômetros de Porto Alegre, na cidade de Três Coroas, a fabricante de calçados femininos Crysalis, está mostrando que é possível e, principalmente, que a empresa sai ganhando quando se desprende  dos padrões normais de contratação.

A Crysalis entrou no radar da fiscalização no primeiro semestre de 2013. Com mais de mil funcionários, precisava ter pelo menos 5% de suas vagas preenchidas por pessoas com deficiência, mas tinha a metade do exigido em lei: 26. Abriu-se então a contagem regressiva de dois anos, mas o RH não precisou de todo esse tempo para se surpreender com os resultados do seu programa de inclusão. O mais difícil, como sempre, foi começar. “Logo de início tivemos uma resistência dos ‘normais’. Quando cobrávamos melhor desempenho, dizendo “poxa, teu número não tá chegando na meta”, o que ouvíamos era “também... olha quantos PCDs a gente tem no setor...”, lembra o superintendente da Crysalys, Rafael Odone Wilbert, filho do fundador da empresa, João Carlos Wilbert.

Ficou muito claro para o RH, comandado pela irmã de Rafael, Liége Wilbert, que o ponto crítico a ser superado era como transformar  uma ideia que vem da cúpula em uma causa que envolvesse a todos, chegando até o chão de fábrica – um ambiente normalmente marcado pelo pragmatismo. Linha de montagem se faz com padrões. Como inserir, nela, pessoas fora do padrão? Como convencer gestores já pressionados para bater metas de que inclusão não sacrifica produtividade? “Conversando com profissionais de outras empresas do nosso setor”, conta o gerente da Crysalis em Três Coroas, Pedro Cardoso Simões, “noto que as perguntas deles sobre o aproveitamento de especiais ainda passam aquela visão do tipo ah, e como está sendo o programa? Eles estão atrapalhando muito? Estão puxando para baixo o ritmo de produção?”.  Pedro responde que não, que é o contrário: que de um modo geral eles trabalham bem porque ficam focados no que fazem, não se distraem nem jogam conversa fora, não faltam ao trabalho nem chegam atrasados. “Mas noto que as pessoas param, ficam pensando... como que perguntando se isso é verdade, se acontece mesmo. Parecem não acreditar.”

Dispostas a ver para crer, algumas empresas do setor têm procurado a Crysalis. A grande perplexidade é por que diachos uma empresa mantém 11% de suas vagas preenchidas por pessoas com deficiência quando só precisaria ter 5% para escapar da multa aplicada pelo Ministério do Trabalho?  “Deixamos as portas sempre abertas para visitação de outras companhias que têm interesse em desenvolver um modelo de inclusão com os resultados que a gente tem tido aqui”,  garante Liége Wilbert, tocando na questão-chave: resultados. Até mesmo gestores que têm o olhar dirigido para a partitura fria dos números terão uma surpresa ao constatar, nos relatórios internos da Crysalis, que o ritmo da produção não caiu. “Diferentemente de 2013, estamos agora muito além da cota legal, temos mais que o dobro de PCDs, e a fábrica se saiu melhor em 2014. A rotatividade e o absenteísmo, em geral, caíram. Não perdemos competitividade”, assegura Rafael, o superintendente.

Uma das mudanças mais visíveis está na pontualidade e na assiduidade. “A pessoa que tem alguma deficiência dá um valor todo especial ao trabalho, acorda mais cedo.  Quando nosso transporte passa na casa desse funcionário, ele já está pronto há algum tempo. Com sol, com chuva, vem trabalhar. É muito difícil faltar”, relata Liége. Na matriz, em Três Coroas, os índices de ausência no trabalho entre PCDs correspondem à metade e em alguns meses representam apenas um terço das faltas verificadas entre os demais funcionários. “Eles dão um bom exemplo para os outros, que se constrangem de faltar ou chegar atrasados por qualquer probleminha quando percebem uma pessoa que não enxerga, ou é cadeirante, ou não escuta, aplicando-se tanto pra estar sempre ali, no seu posto, fazendo  o que tem de ser feito”, relata o gerente Pedro Simões. Esse tipo de exemplo se mostrou contagioso e rebaixou os índices gerais de absenteísmo da Crysalis para um patamar inferior a 4%. Em outras empresas do setor, esse indicador chega aos dois dígitos.

O assistente de produção Vanderlei Candido, por exemplo, teve apenas duas ausências – e justificadas – ao longo dos últimos quatro meses. Na realidade, foram duas manhãs, apenas – à tarde, ele já estava em seu posto, montando as caixinhas onde serão colocados os sapatos. A agilidade com que vai dobrando o papelão não denuncia de imediato que ele tem baixíssima visão. Seus movimentos bem treinados também encobrem outra dificuldade – ele não estica os braços de modo parelho quando manuseia o papelão. Por isso, não foi escalado para trabalhar junto à esteira, que com sua velocidade constante poderia oferecer algum risco. Também não está autorizado a buscar mais papelão quando acabam as caixas, porque elas estão junto a alguns pallets. Deve sentar e esperar que lhe tragam mais material, tarefa que normalmente cabe ao seu “anjo” – como são denominados os funcionários que assumem o papel de guardiões das pessoas que, em cada setor, precisam de cuidados especiais para ir ao banheiro, tomar remédio na hora certa e servir-se no bandejão, por exemplo. “Quando a pessoa com deficiência se sente acolhida, ela permanece na empresa por um tempo superior a três anos”, diz a psicóloga Ana Lúcia Duro, que estuda um fenômeno preocupante – a alta rotatividade de PCDs nas empresas por razões associadas, fundamentalmente, a  dificuldades de adaptação de uma ou de ambas as partes.

No caso  de Vanderlei, o acolhimento da Crysalis se estendeu a uma parte de sua família. A mãe, Maria da Conceição, e sua irmã, Valéria (todos na foto que abre essa reportagem), também estão trabalhando na companhia e têm, como ele, déficit cognitivo. É uma família que traz um episódio trágico na memória: quando Vanderlei era pequeno, um incêndio destruiu a casa em que viviam. Dos mais de dez moradores, o último a escapar das chamas foi Vanderlei, um molequinho com 5% de visão. Ele teve 70% do corpo queimado e sobreviveu nem se sabe como. Em casos como esses, e considerando todas as limitações intelectuais (tendência para esquecer o que está falando e aprendendo, dificuldade para ler, pensamento lento, etc.), torna-se ainda mais decisivo o esforço coletivo de “anjos” e colegas de setor para receber e apoiar essas pessoas que, como a Crysalis está mostrando, podem se inserir numa atividade produtiva.

Quando aprende a montar uma caixa de sapatos amarela, por exemplo, a mãe de Vanderlei terá de aprender novamente a tarefa se no dia seguinte lhe derem para montar uma caixa vermelha. “Tu tens de dar atenção, mostrar, ó, é assim e assim, e daí, naquele dia, pode ficar tranquilo que a pessoa não vai esquecer mais e vai fazer certinho”, ensina o supervisor de Montagens Sérgio Luiz Roos. “Se no dia seguinte ela esquecer, é só mostrar de novo, porque eles aceitam bem, eles são tranquilos. Mas é preciso ter paciência, para que eles não fiquem nervosos.” 

O esforço vale a pena, entusiasma-se Angelita Velho Nunes, líder de qualidade que atua na distribuição de costura para ateliês na fábrica de Três Coroas. “Depois que a gente mostra o que é para fazer, não é preciso pedir duas vezes. Eles trabalham focados, são tão ou mais produtivos que os outros. O senso de responsabilidade que eles têm, nossa!”, garante. Ela trabalha próxima de Catiane Feier dos Santos, 28 anos, revisora de corte, cuja característica é trabalhar sorrindo e produzir muito. Com dificuldade de fala, Catiane não se inibe de deixar claro seu descontentamento se entender que alguém está dispersando a atenção em outras coisas e comprometendo a sequência da atividade. “Se o produto vem malfeito, ela chama a atenção mesmo”, diverte-se Angelita. “A Catiane não consegue ler, só assina o nome. Mas nós damos a ela o talãozinho com a descrição dos itens que entram na produção do nosso sapato, quais os materiais que são usados... E na cabeça dela, de algum jeito, ela monta uma ordem, e segue bem certinho”, elogia.  O repórter pede licença e pergunta a Catiane quantos anos tem de casa. “Ôto”, sorri ela. “E quantas vezes faltou ao trabalho?” O sorriso se abre mais um pouco, inflado de orgulho. “Nunca!” Angela Reinke, então coordenadora de RH da Crysalis, resolve provocar Catiane, perguntando o que ela faz quando um colega não trabalha direito. “Naaada”, diz ela,  escondendo o jogo. “Então todos aqui fazem tudo sempre certo”, pergunta o repórter. “Tempre terto”, volta a sorrir, com simpática insinceridade.

Produtividade e engajamento foram duas expressões que AMANHÃ ouviu de todos os “anjos”, líderes de equipes e gestores a respeito dos trabalhadores com algum tipo de deficiência que atuam na Crysalis. “Até recomendamos às empresas que cuidem para que a produtividade não seja demasiada. Por que eles (PCDs) não dizem não, não têm noção de limite, e dependendo do tipo de deficiência até gostam de tarefas repetitivas”, alerta a auditora fiscal e xerife do Projeto Inclusão de Pessoas com Deficiência no Trabalho, Ana Maria Machado da Costa.  Ela se satisfaz em ver que, aos poucos, o Ministério do Trabalho está enquadrando as empresas que resistem em cumprir uma lei que já vai para seu 24º ano de vigência.  “Houve progressos, mas ainda precisamos avançar para desfazer a visão da incapacidade que impede essas pessoas de receberem oportunidades e de nascerem socialmente”, conclama.

O governo atua sobre empresas e também sobre o sistema S, estimulando instituições como o Senai a oferecer cursos e instrutores desenhados para pessoas com deficiência. Mas as famílias, e sua inclinação superprotetora, ainda são, em muitos casos, uma barreira a ser vencida.  Veja-se o caso de Francis Najua Rodrigues, 20 anos. Segundo a avó, Gessi Rodrigues, que também trabalha na fábrica da Crysalis em Três Coroas, a menina vivia dentro de casa, sozinha, lavando louça, navegando na internet, vendo TV. Com surdez, e muita dificuldade para se comunicar, recusava convites para sair. E poderia ser mais uma pessoa a ficar confinada, ganhando o bônus assistencial de um salário mínimo do governo, quando surgiu o programa da Crysalis.

“A gente se preocupava. Como seria? As pessoas entenderiam ela? Ela ficaria bem?”, lembra Gessy. Hoje, Francis capricha nos sapatos que ajuda a fabricar e os aponta com orgulho nas vitrines por onde passa, e passa por muitos lugares: vai ao banco, à Farmácia, passa seu próprio cartão. “A mãe da Francis se decidiu quando a assistente social da Apae disse que a gente devia liberar ela para a vida”, relembra Gessi. “A assistente falou que não dava pra gente manter a Francis numa caixinha de vidro só porque ela não escuta.”

No Brasil, ainda há muitas caixas de vidro. E, nelas, muitos renascimentos por acontecer.


Leia a íntegra das entrevistas com as fontes desta reportagem a partir da próxima semana no Portal
AMANHÃ.

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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