Será que a gamificação funciona mesmo?
Os jogos on-line e as atividades semelhantes a jogos têm marcado presença com maior frequência nas empresas, na área da educação, fitness e outras. Grandes empresas como Starbucks e Unilever têm usado os jogos para treinamento e nos programas de fidelidade do cliente. Mais de 70% das 2 mil empresas da Forbes Global pesquisadas em 2013 disseram que planejavam usar a gamificação no setor de marketing e de retenção de clientes. O exército americano criou uma “experiência virtual” para recrutar interessados em shoppings e eventos públicos. A revista The New Yorker informou em edição de novembro do ano passado que um vídeo para reabilitação intitulado “Bandit’s Shark Showdown”, criado por cientistas da Faculdade de Medicina Johns Hopkins, propõe uma nova abordagem para ajudar pacientes que tiveram AVC.
Existe a tentação de se acreditar que a gamificação funciona, dada a enorme e persistente popularidade dos videogames e dos sistemas de jogos desde o lançamento, em 1972, do Pong, da Atari. Quem não é apaixonado por jogos? Contudo, os especialistas mundiais em gamificação dizem que tudo que cerca esse novo campo ? até mesmo a própria definição dele (algo como a aplicação de elementos de jogos a situações alheias a eles) ? ainda está aberto à discussão. E o que acontece a uma empresa, não acontece necessariamente à outra. Alguns desses especialistas se reuniram recentemente no congresso da Wharton “Estratégias de Jogos para Motivação e Participação”. Em um painel intitulado “O Estado da Pesquisa”, os participantes discutiram o que se sabe e o que não se sabe sobre gamificação, como ela funciona e que tipo de efeito ela tem sobre o desempenho no trabalho.
“Se atentarmos para o que dizem com frequência as revistas, veremos que houve um período de empolgação que culminou com a desilusão clássica”, analisou Kevin Werbach, professor de estudos jurídicos e de ética nos negócios da Wharton e organizador do congresso. “Contudo, tenho tido várias experiências de um ano para cá, aproximadamente, nas conversas que tenho com pessoas nas empresas ? inclusive com executivos do alto escalão de companhias de grande porte que não imaginávamos que pudessem estar interessados no assunto”, revela. A conversa se volta então para o que os dados e a pesquisa mostravam, e foi aí que Werbach teve dificuldade em responder. “Bem, há um pouco de tudo. Sei de pessoas interessadas, mas não vejo nada de concreto em lugar nenhum”, sintetizou.
Jonna Koivisto, pesquisadora do Laboratório de Pesquisas de Jogos da Universidade de Tampere, na Finlândia, contou que um de seus projetos recentes foi a tentativa de sintetizar a literatura sobre gamificação. Ela disse que embora tenha identificado mais de 800 papers sobre o assunto, somente cerca de 300 são estudos empíricos. “No caso de papers com alguma comprovação concreta real, o número é extremamente pequeno. É triste dizer, mas […] não podemos afirmar com segurança muita coisa a respeito do que funciona e do que não funciona”, reiterou Jonna. Richard Landers, professor de psicologia industrial e organizacional da Old Dominion University, respalda essa conclusão: “Que lacunas ainda não foram preenchidas? Eu diria que, basicamente, todas.”
Um pesquisador que vem tentando ampliar os dados disponíveis sobre gamificação é Ethan Mollick, professor de administração da Wharton. Mollick descreveu como, em parceria com a colega da Wharton, Nancy Rothbard, especialista em comportamento organizacional, testou o “Slam-Dunk”, um jogo de vendas on-line voltado para profissionais do setor. Nesse jogo, cujo tema é o basquete ? e que contou com a participação de centenas de profissionais de vendas de uma empresa de comércio eletrônico em rápido crescimento ? telas e tabelas de pontuação mostravam claramente as atividades do setor: vendas potenciais, telefonemas não solicitados e fechamento de acordos eram representados por layups (bandejas), jump shots (saltos seguidos de arremesso) e cestas, conforme a terminologia do basquete.
Mollick estudou o nível de “consentimento” entre os jogadores ? isto é, até que ponto os funcionários participavam ativamente do jogo. Para medi-lo, foram usados indicadores do tipo “Acompanhei atentamente o jogo”, “Entendi as regras do jogo” e “O jogo foi limpo.” Mollick constatou que quem havia consentido apresentava aumentos acentuados de sentimentos positivos e tinha uma atitude positiva em relação à empresa. Contudo, no caso dos que não haviam consentido, o jogo provocava, na verdade, fortes sentimentos negativos em relação ao trabalho e até mesmo declínio de desempenho. Para Mollick, o experimento é importante sob dois aspectos. “Temos um grande estudo controlado mostrando que a gamificação pode ter um forte impacto, mas ele mostra também que a ausência de consentimento [participação ativa espontânea] pode, na verdade, afetar negativamente o desempenho”, resume. Sem consentimento ? isto é, sem uma atitude de disposição positiva em relação ao jogo e de participação nele ?, só resta à empresa criar uma “diversão obrigatória” [ou Mandatory Fun, na verdade, é o título do paper de Mollick e Rothbard].
Mollick observou ainda a dificuldade de medir os efeitos concretos dos jogos realizados no local de trabalho sobre o desempenho profissional (a pesquisa tradicional diz que os funcionários com atitude positiva são mais produtivos no trabalho). Embora o estudo tenha mostrado uma ligeira queda de desempenho entre os que não “abraçaram” o jogo, não houve um ligeiro aumento correspondente de desempenho entre os que participaram ativamente dele. “Será que essas pessoas fizeram mais ligações de vendas [por exemplo]? Tivemos dificuldade em constatar isso. Talvez isso se deva ao fato de que essas pessoas, nesse ambiente, se sintam muito mais motivadas de qualquer jeito. Contudo, há muitos elementos condicionais nos jogos que os tornam complicados”, contou Mollick.
Ele também discorreu a respeito de outro estudo sobre gamificação em andamento e que vem apresentando dados intrigantes sobre o papel da identidade nos jogos. No “mundo da realidade alternativa” do empreendedorismo que criou para seus alunos de MBA, a turma foi dividida em grupos que usariam um pseudônimo, ou ficariam no anonimato ou então usariam seu nome real. Embora os estudantes achassem “que o nome real seria algo muito mais forte, porque seriam responsabilizados pelo trabalho que fariam”, o que aconteceu, de fato, foi o oposto, de acordo com Mollick. O grupo que havia adotado um pseudônimo teve desempenho muito superior aos demais.
Jonna contou que sua equipe, assim como a de Mollick, pesquisou o contexto do comércio eletrônico. Em um estudo que durou dois anos, a equipe da Universidade de Tampere constatou que os distintivos (conferidos como recompensa quando uma tarefa é completada) aumentavam a atividade de trabalho na empresa. “Nesse caso, temos uma indicação clara de que a gamificação foi um sucesso”, resume ela.
As experiências com tabelas de pontuação ocupam um lugar de destaque no trabalho de gamificação de Landers. Ele disse que tem encontrado “forte apoio para as tabelas de pontuação, desde que adequadamente projetadas no contexto da aprendizagem”. Em um estudo, os funcionários que participavam de programas de aprendizagem eletrônica usaram tabelas de pontuação que recompensavam não o aprendizado especificamente, mas a alocação de tempo e esforço. Ele observou que o uso da tabela de pontuação fazia com que as pessoas voltassem às suas atividades e passassem mais tempo envolvidas nelas. Esse tempo a mais, por sua vez, resultava em melhor desempenho de aprendizagem.
As tabelas também ajudam o funcionário a fixar sua meta, pois muita gente não reage bem quando o gerente lhe diz que metas devem ser alcançadas. “Quando apresentamos a alguém uma tabela de pontuação, a pessoa se esforça para atingir o máximo de pontos possível, mesmo que não se diga a ela para fazê-lo”, constatou Landers. Para Lennart Nacke, diretor do HCI Games Group da Universidade de Waterloo, as tabelas de pontuação constituem uma das áreas mais promissoras de estudos na gamificação. Os melhores usos, acredita ele, ocorrem em cenários onde “criamos nós mesmos o valor da tabela”, o que, segundo o diretor, aparece no estudo de Landers.
Capturando a magia
Mollick referiu-se a uma declaração feita no congresso do ano passado segundo a qual os jogos eram “uma coisa mágica e efêmera” e que tentar transformá-los em ferramentas de negócios quantificáveis era, basicamente, uma batalha perdida. Ele perguntou aos participantes: “Quando passamos de uma situação em que o indivíduo joga durante 80 horas seu jogo predileto para outra em que combinamos, de algum modo, as tabelas com pontos, será que nos distanciamos do que torna os jogos especiais ou surpreendentes, isto é, quando tentamos decompô-los, analisá-los e dar-lhes uma aplicação?”
Sebastian Deterding, professor do Programa de Design de Jogos da Universidade Northeastern, disse que uma questão importante era a diferença inevitável na produção de valores entre os jogos comerciais e a gamificação. “A questão é: conseguiremos chegar ao mesmo nível de entretenimento de um jogo que ‘Triple A’ [os mais sofisticados e caros] ? com 300 pessoas trabalhando nisso durante três anos a um custo de US$ 18 milhões? […] Sim, dá para aprender alguma coisa, mas não sabemos se poderemos atingir aquele mesmo nível.”
Deterding também ressaltou a questão da escolha, que remete ao estudo de Mollick. Em um jogo jogado como lazer e entretenimento, pensa ele, “tenho a opção de escolher jogá-lo voluntariamente […] já que, naquele momento, ele convém às minhas predisposições pessoais, aos meus interesses e ao meu nível de energia. Se deixo de apreciá-lo, posso mudar de jogo. Nessa situação, é realmente prazeroso jogar.” Deterding contrastou essa experiência com a de um jogo jogado no local de trabalho. Nesse caso, disse ele, “o indivíduo é posto à força no jogo”, e por isso seria difícil mensurar seus resultados.
Deterding, que é designer de jogos e também acadêmico, aconselhou quem trabalha com gamificação a não se limitar a “um conjunto pré-definido de elementos de jogos”. Ele relatou um exemplo apresentado por um consultor no congresso da Bizplay, na Alemanha, no começo do ano. Uma editora alemã de revistas de quadrinhos queria promover seus novos lançamentos através da gamificação. O produto final inesperado foi um tipo de participação controlada de um auditório em que os leitores colaboravam efetivamente no desfecho de várias histórias. “Alguém talvez diga que esse seria um elemento de jogo; outros, que não. Começa-se compreendendo e estruturando o problema. Isso, com muita frequência, nos leva a uma situação mais adiante em que […] seja o que for que você produza, isso não envolverá necessariamente nada do que hoje é considerado como jogo ou gamificação, mas é uma boa solução”, contatou Deterding.
*Serviço gratuito disponibilizado pela Wharton, Escola de Administração da Universidade da Pensilvânia, e Universia, rede de universidades que conta com o apoio do Banco Santander.
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