Pessoas nefastas
Já foram tantos os episódios similares vividos que tenho dificuldade em achar um único para ilustrar a conversa de hoje. Mas vamos aos fatos. Lá pelos idos dos anos 1990, estávamos eu, um gerente de exportação que recrutara, e dois empresários muito conhecidos no Brasil; os quatro num pequeno avião. Cruzávamos os céus da Espanha a caminho do norte. De repente, sem quaisquer avisos, começamos a sacolejar no meio de uma turbulência terrível. Lá fora, nuvens negras cercaram o pequeno jato e se fez noite ao meio-dia. Parecia que os ventos iam arrancar-lhe as asas. Tentando desanuviar o ambiente carregado, eu ainda comentei para meu subalterno que estávamos no pior dos mundos. Pois íamos morrer e os obituários dos jornais brasileiros destacariam o falecimento de nossos chefes. Quanto a nós, ficaríamos relegados a notas de pé de página junto com os tripulantes. Ele empalideceu. Mas em poucos minutos, já estávamos a salvo daquele pesadelo que deve ter durado intermináveis cinco minutos.
Qual não foi então meu espanto quando à noite, já recolhidos aos nossos quartos, o tal gerente bateu à porta e pediu para conversar uns minutos. Talvez ainda abalado pela turbulência apavorante, ele se saiu com um estranho desabafo: "Estive pensando no que você falou hoje no momento crítico do voo. A conclusão a que cheguei é que não há justiça nesse mundo. Você já parou para pensar que temos uma formação muito melhor do que a de nossos acionistas? E, no entanto, simplesmente por ter nascido na família certa, cada um deles tem, já na partida, um bilhão de dólares, dinheiro que jamais teremos em nossas vidas? Você acha isso justo?". Acostumado a esses desabafos, lhe ofereci um uísque, um pouco de atenção e resolvi atribuir tudo a uma espécie de estresse pós-traumático. Ao cabo de alguns dias, ele esqueceria aquele discurso atabalhoado e pouco profissional. Tínhamos uma missão planetária e toda autonomia do mundo para trabalhar. De onde poderia vir uma conversa tão mesquinha e estreita?
O tempo passou e não tardou a que se instaurasse uma recidiva. Então resolvi chamá-lo às falas. A sós em minha sala, soltei o verbo sem dó: "A porta da rua está às suas ordens. Mas gostaria que você soubesse que embora nossos acionistas tenham suas limitações e vez por outra falem um português sofrível (fazendo plurais bizarros como "mões" e "navis" para "mão" e "navio"), eles merecem todo nosso respeito. Na hierarquia tácita que rege nosso contrato, temos como missão trabalhar com afinco para ir além das metas estabelecidas. Delas depende uma cadeia de milhares de empregos. Tem mais: eles podem não ter o que você denomina nossa formação, mas eles respiram negócios e investimentos desde que nasceram. Nunca se deram ao luxo de jogar bola na rua e não podem sair de casa sem que uma central de segurança os rastreie o tempo todo. Logo, pagam um preço caro e nem em sonho temos uma fração desse cabedal intangível. Portanto, enquanto estiver aqui, não o quero falando mal deles. Isso é uma empresa, não um convescote de comadres. Tenha sobriedade e compostura, não estamos na arquibancada do Pacaembu".
Anos depois, à medida que amadureci, colecionei fartos elementos para crer que a maledicência é, em última instância, filha dileta do mau caratismo, o que quer que isso signifique. Por mais que se apontem razões para justificar tamanha deformação, sou dos que acham que a empresa não é espaço adequado para esse tipo de debate. Quem não tem lado, deve pedir o boné e cair fora. Se as amarras carcomidas do setor público permitem esse tipo de relação enfermiça - o que é mais tolerável quando muita gente apenas faz de conta que trabalha e, por incrível que pareça, praticamente não pode ser demitida -, acho-as inaceitáveis no setor privado. Trazer esse tipo de ideologia a lume por razões pessoais torpes e mal resolvidas desabona qualquer profissional. Se só a ele compete procurar um terapeuta, a empresa não deveria hesitar em desligá-lo. Se ele inveja a afluência financeira de seus superiores, trate de trabalhar muito. Faça como eles: durma cedo, acorde cedo e beba menos. Em suma, pague o preço e boa sorte.
Vamos a outro exemplo. Não faz muito tempo, num animado coquetel, alguém fez menção à família Moreira Salles e aos caminhos singulares que trilharam os filhos do patriarca. Foi então que um dos integrantes da roda, frequentador contumaz do Instituto fundado pela família, esbugalhou os olhos e, dedo em riste, pediu que ninguém ousasse louvar o que chamou de uma família de oportunistas: "Com os juros bancários onde estão, qualquer um faria o que eles fizeram". Ora, estamos falando de um sacripanta que é incapaz do menor gesto em relação ao mais esfomeado dos pedintes. E que, se o fizer, vai alardear aos quatro ventos por anos. Pergunto: compete à empresa suprir uma falha que vem muitas vezes da juventude? Acho que não. O que quase sempre acontece é que esse tipo de desajuste é resolvido na arena da vida. É ela que se encarregará de limar as arestas e, se isso não trouxer maturidade efetiva ao cidadão, ela o castigará com um isolamento crescente. Tudo isso por ter ele projetado seus complexos junto a quem, não raro inocentemente, mal imagina os sentimentos baixos que movem aquele colaborador serviçal e soez.
Nesse contexto, tendo visto homens de grande fortuna e inexcedível dedicação profissional dedicar o pouco tempo que teriam para se distrair a atividades de benemerência, choca ver o quanto os invejosos imaginam que não fazem mais pelo outro porque lhes faltam recursos. Nada mais longe da verdade. Sabemos que a ordem é justamente a contrária. Independentemente dos caminhos trilhados por cada um, é certo que ciclos virtuosos não brotam do nada. Assim, sempre me acautelei contra os que abraçam um trabalho novo pensando nos benefícios que vão tirar da posição. Estes dificilmente chegam longe. Mais lembram funcionários que pedem vales adiantados, cavam litígios para se beneficiar de causas trabalhistas e disseminam um interminável rosário de queixas e ressentimentos por onde passam. Sabemos que nem sempre está a seu alcance perceber que ir além das expectativas que se tem para com elas é dever mínimo para que possam um dia reverter os maus ventos que as levaram à lona. Encantar o cliente não é opção, é imperativo.
Para concluir, conheço de perto um consultor paulistano com quem trabalhei em diversas frentes. Ao perceber atitudes discrepantes com o que me parecia uma postura construtiva, soube por seus colegas que o ilustre engenheiro professava um estranho credo: simplesmente tinha inveja, quando não desprezo, por empresários-clientes que, sem ter seus galardões acadêmicos enfatuados, se tornavam bilionários e o contratavam para prospectar negócios. A pergunta a que ele não conseguia responder era: por que eles e não eu? Mais de um cliente percebeu essa anomalia grave e simplesmente abandonou a consultoria, mesmo que a contragosto. Eu fui um deles. Oito anos passados desse afastamento, sonho com o dia que lerei no jornal que ele não mais integra os quadros da empresa. Seria a senha para que fizéssemos novos trabalhos em equipe. A lastimar apenas que tenhamos perdido anos preciosos de cooperação por conta dessa lamentável figura. Vai uma dica: quem quiser fomentar o debate ideológico dentro da empresa, encontrará mil pautas férteis para abraçar.
Maldizer e caluniar não é uma delas, garanto.
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