O livro do Harry
De São Paulo (SP)
O "menino querido", como o chama o Rei Charles, é, antes de tudo, um garoto meio chato, coitado. Parece ser dessas entidades que jamais se conciliarão com o que se conhece por felicidade. Por muito que possa haver fingimento, pieguice ou dissimulação, a verdade é que o ex-Príncipe é dessas pessoas que, a despeito das desgraças que nos conte, por reais que sejam, poucos se tomarão de simpatia por ele porque a autopiedade atinge cedo a saturação. Apiedar-se de si próprio não é um bom caminho. Mas, é claro, temos pontos mais substantivos do livro com que nos preocupar. Quem navega por meio quilo de papel receberá menos do que esperava, mas algo disso tudo fica.
1 – A impressão que se tem é que a morte de Diana, quando ele tinha 12 anos, foi o fato fundador da vida do caçula. Seria compreensível que tivesse sido o mais brutal, mas ali Harry decidiu que seria eternamente refém das circunstâncias que provocaram a morte da mãe. Como se a única coisa que contasse fosse a sanha dos paparazzi, e não a fatalidade que colocou-a com o namorado Al-Fayed nas mãos de um motorista em cujo sangue circulava um balde de álcool. Eleger os odiosos paparazzi e os jornalistas inescrupulosos como a referência de todos os males convém à elaboração de uma narrativa vitimista e conveniente. Mas, ainda assim, exasperante.
2 – Sempre tive maior simpatia pelos filhos primogênitos. Tenho uma resistência natural aos segundos – ou terceiros ou quartos – que se agarram na barra da saia da mãe e dali chantageiam meio mundo. Harry é uma mistura de bobo de corte carente e de valente empertigado. Com todas as ressalvas que ele faz à Coroa, em momento nenhum tem pudor de contar que sua vida é construída fundamentalmente em torno do ócio e do lazer. Cercado de paparicados e respaldado por uma infraestrutura que lhe permite deslocar-se pelo mundo com escolta armada, Harry é assumidamente preguiçoso, pouco aplicado em superar as limitações e muito bom de copo, de que se orgulha.
3 – O livro avança à base de frases curtinhas, o que o torna às vezes cansativo. O relato dos tempos de guerra no Afeganistão é tedioso, está eivado da intenção de criar um clima, de colocar Harry bem na fita, de dramatizar uma missão onde houve mais tédio do que ação. Deu vontade de pular umas tantas páginas, mas me segurei. O que se salva e convence são as inúmeras partes relativas ao convívio com a realeza, seus códigos, conflitos e, por que não, a incrível consagração da futilidade. Os "royals" mais parecem uma família de classe média alta, heterogênea e emergente, que chutam a canela uns dos outros por causa de dinheiro, de prestígio e pela proximidade da Rainha – neste caso.
4 – Harry faz o que quer, quando quer e como quer. Para quem só pegou o metrô londrino uma vez nos tempos da escola para ver uma peça de teatro em grupo, deve ser reconfortante sumir em Botswana sempre que bate à vontade. Pode ser para ver amigos, namorar, contemplar a vida selvagem e, por que não, encaixar uma solenidade que possa transmitir à audiência a sensação de que estava trabalhando quando ajudou um turista a desatolar um carro. O mesmo vale para vários países em que o grosso da vida era comparecer a torneios de polo, caçar perdiz, atirar em veados, tomar banho nas corredeiras de Balmoral e beber um bocado em Kensington, Buckingham, Windsor e outros domicílios reais.
5 – Charles é bastante palpável, Camila idem e as rusgas com o irmão e a cunhada Kate também convencem. Não parece haver uma gota de inverdade no carinho genuíno que o unia à avó. Mas é evidente que o livro ganha densidade quando Meghan Markle entra na história. Foi como se ela potencializasse tudo o que havia de melhor e de pior nele. De ruim, a sensação de "nós contra eles" que sempre o perseguiu. De bom, que ele saísse do casulo aprisionante da autorreferência. Razão tinha Charles, hoje Rei, quando disse que se Harry tivesse tido sangue frio para se conter, a imprensa passaria a respeitá-lo por isso e ele logo deixaria de ser alvo do bullying orquestrado. Mas havia Meghan.
6 – Termino. Já falei mais do que devia e menos do que gostaria. Não se podia querer de um rapaz jovem uma biografia densa e recheada de grandes fatos. Não há espaço para preocupações que não sejam com o próprio umbigo. Não há segredo sobre as bebedeiras ou as drogas. É incrível como essa meninada é comum. Fica óbvio que Meghan e Harry levaram uma rasteira nada sutil da Coroa quando ela os destituiu de títulos e de representatividade. Sobretudo, quando cassou o dinheiro e os seguranças, o que o levou a correr atrás de oportunidades. O livro é visivelmente uma delas e já lhe valeu 20 milhões de libras de adiantamento. Harry está nas mãos de Meghan. O contrário não procede.
7 – De sã consciência, quem pode querer mal a Harry? Mas, entre nós, seria motivo de grande alívio se ele nos desse uma trégua alentada e só voltasse ao cenário no dia em que Archie, seu menino mais velho, fizesse 20 anos. Harry cansa. Esperava melhor desempenho do famoso "ghost writer" americano JR Moehringer, que foi o bem pago carregador de piano. Quanto a comprar ou não o livro, deixo ao seu critério. Ambas as posições podem ser defendidas. Vá pelo seu coração.
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