Fake News Made in Macedônia

Poucas vezes vi um bom documentário brasileiro sobre o que acontece fora de nossas fronteiras. Quando bem sucedidos, na maioria das vezes eles se contentam em repetir os cacoetes de nosso padrão de qualidade em tela pequena, que consiste em texto anó...
Fake News Made in Macedônia

Poucas vezes vi um bom documentário brasileiro sobre o que acontece fora de nossas fronteiras. Quando bem sucedidos, na maioria das vezes eles se contentam em repetir os cacoetes de nosso padrão de qualidade em tela pequena, que consiste em texto anódino, imagens espetaculares, trilha sonora vibrante e tese de assimilação osmótica, dessas que não coloquem em risco os índices de audiência. São menos numerosas ainda, as emissões que derivam de sólido jornalismo investigativo, o que, a bem da verdade, dificilmente acontece mesmo dentro de nossas fronteiras. Pois bem, contrariando todos esse cânones, foi com prazer que vi domingo último a matéria da GloboNews sobre os meninos da Macedônia que, mediante compensação financeira, alimentaram as chamadas "fake news" em diversas frentes, sendo delas a mais notória a eleição de Trump nos Estados Unidos. 

Mas como é de minha praxe metodológica, comecemos pelo país. Não posso me arvorar de conhecedor profundo da Macedônia (foto). Mas, sendo você bom viajante, uma semana numa cidade como Skopje e arredores pode ajudar a formatar uma visão razoável da terra. Pois bem, era inverno e precisei atravessar a fronteira a pé, já que o taxista albanês não era autorizado a tal. Deixei para trás os picos nevados de uma paisagem que parecia com uma cena de Ismail Kadaré e, para minha surpresa, logo atravessava outras tantas montanhas, já em território macedônio. Chegando à capital, alojei-me num pequeno hotel cujo lobby era apinhado de fumantes inveterados, e de toda sorte de descuidistas profissionais, nesse país de imenso desemprego entre jovens. Por toda parte, imagens de Madre Teresa, a filha ilustre. Nos escombros da ferroviária, vestígios do terremoto de 1963 e um museu. 

Gostei da Macedônia. Como costumo gostar de quase todo país de onde saio inteiro. Antes de chegar lá, vinha acompanhando uma série de propagandas institucionais do governo para promover o pequeno país. Diante dos prédios "kitsch", das colunas romanas imensas e cúpulas douradas, uma monumental estátua de Alexandre, o Grande avaliza o ideal exacerbado que o país faz do futuro. Encruzilhada de búlgaros, albaneses, kosovares, sérvios, turcos e gregos, a clivagem entre Ocidente e Oriente fica patente nas igrejas ortodoxas ao lado de mesquitas. País recôndito da extinta confederação iugoslava, eles usam o alfabeto cirílico. Montados numa zona de fratura civilizacional, muitos emigram e os que ficam precisam se reinventar todo dia ou então descobrir um trabalho no governo, o grande empregador. Nos cafés, os rapazes jogam gamão e tomam chá fiado, para matar o tempo.

Pois bem, foi lá que chegaram os rapazes da GloboNews. De tempos para cá, ouvia-se que era da Macedônia que provinham as notícias estapafúrdias que incendiavam a militância de Trump nos Estados Unidos. No mais das vezes, elas enlameavam a reputação de Hilary Clinton. Tanto ao lhe atribuir quebra de ética ao usar endereço eletrônico privado para tratar de assunto público quanto ao envolvê-la em diatribes financeiras mal explicadas. A investigação levou os jornalistas a seguir uma pista até a cidade de Veles e, mediante 200 euros de "bakhshish", um jovem de 19 anos deu um dos mais impressionantes depoimentos que vi nos últimos tempos. Com ares do adolescente que não deixa de ser, disse que fazia isso por dinheiro e escarneceu da militância de Trump que tudo engolia. "Inocentes" foi a fórmula branda que usou para qualificá-los. "Idiotas", devia estar pensando. 

Nesse contexto, as revelações não param de surpreender. O entrevistado admitiu que muitos colegas receiam ser filmados e ter os nomes associados ao pastoreio de uma manada digital de milhões de cidadãos. Na visão dele, contudo, seu envolvimento estava amparado pelos imperativos de sobrevivência. Dando prova de perspicácia, disse que Bernie Sanders lhe parecia o candidato mais preparado. Escudado pela omissão da legislação a respeito da disseminação de calúnias, explicou como as notícias podem ter sua veracidade verificada. Simpático, porém frio, sumamente inteligente, o depoimento deveria ter veiculação ampla entre navegadores da Internet que, apressados em veicular o que gostariam de ouvir, espalham sandices "Made in Macedonia" quanto à Coreia do Norte e, é só uma questão de tempo, podem vir a ser um poderoso eleitor no Brasil de 2018. 

Na verdade, não há viagem perdida. O que pode acontecer é que nem sempre estamos preparados para associar pequenos fatos isolados à agenda maior do mundo. Da mesma forma que fanáticos religiosos se escondiam numa caverna paquistanesa para dali arbitrar o destino de Nova Iorque, eu mal poderia imaginar que daqueles cafés enfumaçados sairiam as cabeças que interfeririam de forma tão determinante nos destinos do planeta. E, como mostrou a reportagem, tudo isso a partir de um quartinho discreto numa cidade perdida de um país remoto. E, diante das telas, uma legião de imberbes cuja aspiração era ter dinheiro para impressionar a namorada, ajudar os pais ou comprar uma cerveja. Boa matéria. Ela é prova consistente de que não nos sobram só os recursos tecnológicos e orçamentários, senão também o tirocínio de ir atrás do que faz a diferença.  

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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