Diz-me como pagas

Estou no coração da Alsácia, leste da França. São dezenas as cidades que levariam o viajante desavisado a pensar que, na verdade, estamos mesmo é na Alemanha. Isso decorre das casinhas em enxaimel de telhado inclinado, do gosto pronunciado por pratos...
Diz-me como pagas

Estou no coração da Alsácia, leste da França. São dezenas as cidades que levariam o viajante desavisado a pensar que, na verdade, estamos mesmo é na Alemanha. Isso decorre das casinhas em enxaimel de telhado inclinado, do gosto pronunciado por pratos à base de chucrute e porco, da tradição do vinho branco e da cerveja, e da forte incidência de pessoas brancas, cabelos e olhos claros. Efetivamente, quem assim imaginar, não estará longe da verdade mesmo porque a região francesa já pertenceu também à Alemanha. Daí que muitos preferem mesmo se aferrar à identidade alsaciana, falar seu dialeto, muito embora não se queixem do fato de isto não lhes dar direito a um passaporte, como pede uma parte expressiva dos catalães. 

Um aspecto de soberania, contudo, vem chamando atenção crescente. É o caso das moedas locais. Como você reagiria se em pleno coração do Euro, alguém lhe cobrasse por um copo de vinho em rabanetes ("Radis"), cegonhas ("Cigognes") ou em pedaço (Stück")? Pois bem, o Radis existe já há cinco anos na região de Unhersheim. O Stück (foto) é próprio de Estrasburgo e é moeda corrente na província do Baixo-Reno numa rede que abrange 230 empresas. Já a simpática Cegonha é a mais recente, data de um ano, e é uma espécie de identidade dos defensores da solidariedade e da ecologia na região de Mulhouse. Sem criar grande alarde e sem querer afrontar o sistema monetário europeu, elas conferem identidade a quem paga e recebe. Mas não é só aqui.

Isso porque já há cinco anos o País Basco, na Espanha, vem consagrando o uso do Eusko, que já tem mais do que o equivalente a 1 milhão de euros em circulação. Assim, quando o comerciante é pago em Eusko, ele já fala em língua basca ao cliente. O que menos importa nessa comunhão de valores, são os valores. Mesmo porque um Eusko equivale a um Euro. Nesse contexto, pode-se ter conta bancária em Eusko, cartão de crédito, e ele cria um sistema de fidelização que funciona. Donos de bares em várias regiões dão preferência a fornecedores que aceitem o Eusko. É como se torcedores de um time dessem preferência aos demais. A última vitória relevante dessa bandeira foi fazer com que a moeda seja aceita no País Basco francês, em Bayonne e Hendaye.

Não deverá tardar para que vejamos a eclosão do mesmo fenômeno no Brasil. Não me espantaria que o Nordeste adote um "Lampião" e o Distrito Federal o "Candango". 

Pois em outra partes da Europa, a moda se dissemina e reforça traços identitários. Na cidade de Bristol, na Inglaterra, o chamado Bristol Pound já chega a quase 800 mil Libras Esterlinas de meio circulante, apenas um pouco mais do que Chiemgauer da Alemanha, que chegou a 650 mil Euros. São movimentos ainda pouco perceptíveis, mas no geral muito simpáticos. Assumir e reforçar traços culturais únicos pode tomar formas construtivas e irreverentes, que não passam por atear fogo a bandeiras nem quebrar vidraças. É claro que nem todo mundo gosta, daí talvez o encanto. 

Pois, pensando bem: quando e onde é que as manifestações de cunho cultural serão unanimidade? Quando passam a sê-lo, na verdade, é porque já perderam algo de seu vigor. 

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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