Dilemas em Paris

Viver a cidade em estado de hibernação absoluta dá forma e conteúdo ao que de mais próximo vi e vivi do Apocalipse, numa versão edulcorada
Às oito da noite, mesmo que o termômetro esteja a 5°, abrem-se as janelas e a França aplaude o pessoal da saúde

De Paris (França)

Até que me ofereceram lugar para voltar ao Brasil. Mas, convenhamos, não teria sido prudente pegar um avião e passar mais de 11 horas a respirar o mesmo ar que outros duzentos passageiros, originários de pelo menos vinte países. Acaso não estive eu mesmo em 10 deles, só em 2020? Então, declinei. E aceitei a oferta de um asilo sanitário, por assim dizer, que, aparentemente, se estenderá por mais tempo do que todas as temporadas que tive em Paris nos últimos 46 anos, de meus 61 de vida. O leitor dirá: melhor em Paris do que em Tirana, na Albânia. Concordo. Aqui não falta comida, bebida, informação, transparência na gestão da crise e, para minha alegria, muitos livros. Mas nem tudo é o que aparenta. Viver Paris em estado de hibernação absoluta dá forma e conteúdo ao que de mais próximo vi e vivi do Apocalipse, numa versão edulcorada. A beleza à mão inacessível tortura.

O dia começa com um aliado primoroso: o rádio. Nunca é um despertar sereno. O noticiário abre com o saldo de mortes da véspera, e um ou outro caso desesperador que galvanize e eduque a audiência. Banho diurno não é recomendável porque paga-se tarifa plena de energia. Melhor deixar para a noite, pois o dinheiro anda muito curto. Então preencho o salvo-conduto da data, pego o carrinho e vou à caça. Sem dificuldade, encho-o de alguns dos produtos que fazem as delícias da França. A cada dia, porém, diminui o apetite, e cresce a preocupação com a saúde. Até que ponto podemos comer queijos untuosos e salames de javali, regados a vinho robusto, se não podemos dar sequer uma caminhada? É temerário. Até porque convém evitar o hospital. Se não morrer de acidente cardiovascular, o glutão da vez sairá de lá premiado com o coronavírus. Ou nem chegará a sair...vivo.

Na volta para casa, jornais - que vendem-se como nunca -; papel higiênico, se encontrável; e, para otimizar o trajeto, tudo o que possa ser útil em caso de penúria, como água com gás e fruta seca. Então é hora de reforçar a assepsia da casa. Desinfetar maçanetas, lavar roupa, ler, escrever e preparar o almoço. É claro que se impõe um copo de vinho quando do noticiário. A tarde é dedicada ao trabalho.

Escrever, atualizar a correspondência, falar com pessoas queridas - elas são tantas -, e torcer para que o Brasil não se desgoverne na gestão da catástrofe. Às oito da noite, mesmo que o termômetro esteja a 5°, abrem-se as janelas e a França aplaude o pessoal da saúde. Então, será noite cerrada e cada um vai se virar para que no dia seguinte acorde bem. E, sobretudo, saudável, sem tosse nem corrimento nasal. Isto é Paris.

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Quinta, 21 Novembro 2024

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