Como negociar com franceses
Li que nosso candidato a embaixador em Washington chamou o presidente Macron de "moleque". Meus 61 anos por certo me distanciam velozmente dos cânones consagrados pelos mais jovens sobre a arte de exercer a diplomacia. Nesse contexto, em meus 46 anos de tratativas com a França (só não estive lá desde 1973 em 1974 e em 1979) e com os franceses, ainda não me ocorrera que um novo receituário estava em voga. Prometo me reciclar.
Pensando na situação, imagino como a assessoria de Macron lhe traduziu este "moleque". Suponho que tenha sido por "voyou". E não posso imaginar quem tenha ousado se lhe apresentar a palavra tão ultrajante. Seja como for, como o atilado Bolsonaro Jr. não postula a embaixada parisiense, e sim a de Washington, permito-me elencar cinco conselhos singelos a quem optar por trabalhar com a França dentro de padrões mais conservadores.
1) Franceses no geral têm uma visão messiânica de si próprios, decorrente de boa dose de etnocentrismo. Não é exclusivo deles: americanos, chineses, indianos e russos pensam da mesma forma. Como tal, eles são tentados a contrapor sua visão de mundo à dos Estados Unidos, tida por hegemônica e arrogante, a despeito da velha relação de amor que os une. Manda a boa norma que ouçamos com consideração o que eles têm a dizer sobre quaisquer agendas. Na brecha da lógica de que são escravos, e só nela, você crava seu argumento. Está aberta a negociação e por aí passará uma boiada;
2) O conhecimento da forma cartesiana de raciocinar é uma chave poderosa para se encontrar um espaço de "entente" com o interlocutor francês. O autor de "O discurso do método" exerce uma poderosa influência em corações e mentes. E aqui não falo só do professor da escola Politécnica, mas sim também do homem comum com quem tomamos um café no balcão dos bares. Daí a profusão de expressões irônicas desde "ce n´est pas évident" às proverbiais lapalissadas que tanto os divertem. O jeito "râleur" (reclamão) de ser é mais aparente do que profundo. Neutralize-os com um sorriso e aprenda a ler o não-verbal;
3) O construto mental francês se dá em torno da língua. Se você fala francês e sabe apreciar todas as vitaminas inerentes ao idioma, sua vantagem com relação a quem não sabe é abissal. Ser um francofônico é um galardão comparável a falar catalão em Barcelona. A mudança de patamar é imediata. Se, ademais, você fala sem sotaque – "presque sans accent" – você trilhou três quartos do caminho. Mas aí você já dominará a maioria dos códigos culturais, e não precisa continuar a ler isto. Sempre será tempo de aprender uma língua que lhe escancará portas em pelo menos 20 países no mundo;
4) O francês como povo é considerado um amigo da humanidade. Toda semana Paris pulula em torno de manifestações e alguns fazem desses longos passeios pelos bulevares uma profissão. Em época de greves, as solidariedades cruzadas ecoam a devoção pelo esporte nacional (a elite gosta de rúgbi, não de futebol). Apesar de toda grandeza, condutas xenofóbicas e mesquinhas espoucam como decorrência das dificuldades de inclusão dos imigrantes. Daí que em casa, a benevolência é menos evidente do que na imagem de marca. Mostre empatia pela situação, ouça-os e louve-lhes a grandeza da História;
5) Mostre-se à gosto com os ícones culturais franceses. Eles não gostam de bajuladores e melífluos, mas adorarão que você lhes louve a excelência dos vinhos (sobretudo os mais simples), as alegrias à mesa, a sensualidade das cidades, o acervo artístico incomensurável, a beleza do cancioneiro popular, e a imprescindibilidade da França como contraponto em escala global. Acautele-se quanto à política – Macron, Fillon, Mélenchon – pois lá também eles vêm de momentos disruptivos, de fratura eleitoral, ou seja, quem levou ganhou porque o eleitorado queria impedir que o "mal maior" vencesse. O "mal maior" tampouco é unanimidade.
Essa situação lembra alguma coisa? "Bon voyage." E nunca, jamais, diplomata ou não, chame um chefe de estado de "moleque". É todo o povo que ele representa que será esbofeteado. Pelo menos era assim até ontem.
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