"Burakunin"

Desde ontem que venho vasculhando os desvãos da memória declinante à procura de uma palavrinha japonesa que se incorporou a meu vocabulário da forma mais fortuita. Foi assim. Chegáramos a um reputado restaurante de carnes na região de Shibuya, em Tóq...
"Burakunin"

Desde ontem que venho vasculhando os desvãos da memória declinante à procura de uma palavrinha japonesa que se incorporou a meu vocabulário da forma mais fortuita. Foi assim. Chegáramos a um reputado restaurante de carnes na região de Shibuya, em Tóquio, e passamos a examinar um cardápio bem ilustrado de que constavam os muitos tipos de preparo do "Kobe beef", tida e havida como a carne mais saborosa e cara do mundo. Durante a curta vida dos novilhos, eles são massageados diariamente, tomam cerveja, comem ração equilibrada e morrem sem sofrimento. O resultado é uma carne tão tenra e marmorizada que praticamente derrete na boca. Todo esse esforço decorre da obsessão japonesa em buscar a diferenciação aos olhos do consumidor. Pois se o exíguo território não se presta a que sejam grandes produtores, a aplicação lhes permite ser os melhores. Pois bem, enquanto esperávamos a chegada dos pratos, meu bom amigo Sato – um japonês grisalho que sabia das coisas –, perguntou se eu já ouvira falar dos "burakunin". 

Diante de minha negativa, ele desvelou mais uma faceta desse país de muitas surpresas. Espécie de casta do povo japonês, ela foi assim designada no período medieval. Literalmente "burakunin" significa "povo da aldeia". O que os caracterizava? Segregados numa zona residencial à parte, cabia a eles fazer os trabalhos sujos e menos nobres. Tidos, portanto, como "kegare" (impuros), era deles a missão de enterrar os mortos, limpar as redes de esgoto, cavoucar lixões e eviscerar animais. Assim sendo, o trabalho com carne e couro estava associado ao que podia haver de mais repugnante aos olhos da sociedade. Diante disso, eram proibidos de trabalhar na lavoura do arroz, sob pena de macular com o toque o alimento mais sagrado da culinária japonesa. Condenados a casar entre si, até as empresas levavam a sério a tarefa de rastrear ancestrais "burakunin" no sangue de colaboradores. A linhagem familiar ("koseki") de um pretendente também era diligentemente verificada antes do casamento. Conta-se de uma mulher que, depois de dar à luz, rejeitou o filho ao saber que o pai era "burakunin".

Os "burakunin" totalizam entre 2 a 3% da população japonesa. Se o tabu pouco a pouco foi se diluindo, e se as novas gerações já não têm aquela reação de repulsa a eles, comum a seus ancestrais, ainda há um longo caminho para que consigam se inserir por completo no tecido da sociedade nipônica. Embora já não tenham que ocupar posições estritamente nos ofícios que lhes eram destinados durante mais de dois séculos do período Togukawa, alguns já se tornaram políticos e escritores. Não obstante essa discreta reversão de expectativas, li que boa parte da organização mafiosa Yamaguchi-Gumi é formada por proscritos "barakunin" que não conseguiram outras oportunidades fora do crime. Finalizando minhas confabulações com Sato, perguntei como se sentiria se a filha dele chegasse com um "burakunin" a tiracolo. Fazendo um gesto de desespero no ar, disse que seria um enorme castigo. "Carne é muito bom, Dourado san. Mas essa gente por alguma razão não é confiável. Lidam com faca, sangue, miúdos de boi e a fedentina do couro. É normal que um dia se voltem contra o mundo". E, então, mudamos de assunto. 

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Terça, 03 Dezembro 2024

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