O homem que aprendeu o Brasil
É próprio da vida internacional que estejamos a toda hora encontrando pessoas que nasceram num país e viveram em outro. O primeiro grande grupo de expatriados com que convivi foi o dos turcos da Alemanha. Até meus 17 anos, a Turquia era uma mera referência histórica, sem maior tangibilidade. Mas chegando ao Instituto Goethe, de Rothenburg, vi que estava cercado de turcos dispostos a se fixar no país. Mal sabia eu que aquela era a ponta do iceberg de uma diáspora formada primeiramente pelos "Gastarbeiter", que compunham então boa parte da mão de obra menos qualificada do país. Aqueles com quem passei a conviver eram a geração da esperança, a primeira que teria acesso a camadas mais altas da sociedade alemã.
Depois disso, a presença de estrangeiros de toda sorte permeou minha vida. À minha maneira. Passei a internalizar a "Zeitgeist" de muitos deles em diversas instâncias: no viver longe do lugar onde nasceu e no sentimento de que a adaptação é uma viagem que se dá em muitos tempos. Isso porque tem momentos em que o sentimento de pertencimento é inquestionável. A pátria deixa de ser o lugar da infância e pode ir além, tal como quando é o lugar de nascimento de nossos filhos, ou onde nosso capital intelectual encontrou condições propícias para florescer – o que é menos banal do que se imagina. Das muitas adesões, o caminho da cultura por certo tem uma pitada de divino e transcendente.
Assim sendo, foi com genuíno prazer, quando não com emoção, que li "O homem que aprendeu o Brasil", de autoria de Ana Cecília Impellizieri Martins. Trata-se de uma biografia do filólogo, tradutor, linguista, dicionarista, crítico e escritor Paulo Rónai, nascido na Hungria, no começo do século passado, e que aportou às nossas águas no alvorecer da Segunda Guerra, onde teve longa e profícua vida intelectual. Paulo foi um ser humano admirável. Homem desprovido das vaidades ocas dos pavões da cultura, um pai livreiro às margens de Peste, no Danúbio, assinalou o começo de uma vocação que nunca o deixou. Feliz na Hungria natal, o anti-semitismo colocou-lhe a vida em perigo e tratou de se articular para escapar à sina trágica de muitos patrícios.
Foi nesse contexto que o jovem latinista, que já vinha de duas imersões em Paris e na Itália – dando vazão ao amor ao latim, ao francês e ao italiano – debruçou-se sobre um mapa do mundo e passou a matutar sobre as alternativas que o destino poderia abrir a um jovem judeu que, não sendo observante, estava fadado à morte. Quando o Brasil apareceu como alternativa, Paulo não hesitou em seguir a intuição, e se articulou junto à nossa legação com elegância e presteza, onde apresentou traduções de poesia brasileira em húngaro – o que lhe valeria tempos depois uma carta de Getúlio Vargas, assinada de próprio punho. Mas isso estava longe de resolver a empreitada tortuosa que teria pela frente.
Paulo Rónai chegou ao Brasil e não tardou a se fazer querido, senão imprescindível, para pessoas de quilate artístico e pessoal como Aurélio Buarque de Holanda, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Otto Maria Carpeaux, outro luminar da Europa Central. Paulo perdeu a primeira esposa que não chegou a vir para o Brasil e, por terrível ironia da vida, teve de verter do húngaro para as autoridades a carta em que soube da morte do pai. Não obstante as dores, logo o destino haveria de lhe sorrir. Sempre às voltas com uma colossal agenda de trabalho, esse mestre na arte de fazer amigos deixou saudades por onde passou, e até em quem não o conheceu.
O amor incondicional que Paulo Rónai devotou ao Brasil começou pela nossa literatura, continuou nas ruas do Rio de Janeiro e se plasmou para sempre em Nova Friburgo, onde construiu uma casa, instalou a biblioteca e criou a família. Tudo isso e muito mais está nesse livro especial que, longe de esgotar todas as dimensões do personagem de exceção, responde a boa parte das perguntas que trazemos ao abri-lo: como foi sua infância e adolescência? Quem eram seus pais? Como o Brasil e a língua portuguesa entraram em sua vida? Quem foram as pessoas com quem conviveu? Como foi seu reencontro com a Hungria? O que levou de recordações mais caras, das tantas que entesourou na vida?
Ler a vida de Paulo Rónai é entender um Brasil que nos escapa. É reatar com uma noção de utopia que nós, os nascidos na década de 1950, trazíamos de fábrica. Conhecê-lo por dentro provoca o mesmo que disse um dia um leitor de Camus ao próprio: lê-lo, Monsieur, é dar-se a vontade de apertar-lhe a mão. No caso de Paulo, um imenso abraço. E, de certa forma, um pedido de desculpas pela lambança que fizemos com um país que ele nos ensinou a amar. Eis um livro para ter à mesa de cabeceira, para anotar, para refletir. Eis um trabalho que deixa abertas portas para que entendamos pessoas como ele, Carpeaux, Anatol Rosenfeld, Stefan Zweig, Ziembinski e tantos outros que vieram de longe para nos ensinar a gostar do Brasil.
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