Uma empresa faminta de sentido
Pode não ter sido a mais importante, mas foi provavelmente a mais interessante notícia do mundo empresarial sulista de 2019. Em uma breve entrevista à Zero Hora de 11 de abril do ano passado, Jorge Hoelzel, presidente da gaúcha Mercur, fabricante de material escolar e produtos à base de borracha, declarou não ter "fome de crescimento, de faturamento". Como? Sim, a companhia de Santa Cruz do Sul se disse disposta a "olhar para questões mais humanas", pois "trabalho não é tudo na vida". "Temos de lidar com as pessoas e esquecer um pouco os números", ponderou o CEO, que há doze anos vem tentando incutir uma mentalidade diferente na quase centenária indústria – mais voltada a princípios como responsabilidade social e sustentabilidade, por exemplo, e menos ao aumento das vendas per se.
Na IstoÉ Dinheiro de 9 de setembro, Hoelzel deu mais detalhes sobre as escolhas da Mercur. A empresa abandonou os personagens infantis de sua linha escolar, por entender que causavam uma indesejável competição entre as crianças. E parou de fornecer produtos para as indústrias tabagista, armamentista e de bebidas alcoólicas (como esteiras de borracha para as linhas de produção), além de cancelar o fabrico de itens que causavam maus tratos aos animais. "Precisávamos dizer ao mundo a serviço do que estávamos. E nos deparamos com a falta de um propósito digno, que nos fizesse acordar de manhã com orgulho (...). Queríamos [oferecer] produtos e serviços que agregassem sentido à vida das pessoas e do planeta", declarou o executivo.
Empresas que recusam o crescimento a qualquer custo, ou que deliberadamente impõem uma passada mais lenta na sua caminhada, não são exatamente uma novidade. O que chama a atenção no caso da Mercur é que a fabricante gaúcha optou por um cavalo-de-pau filosófico já octogenária, o que certamente ajuda a despertar reações de surpresa e curiosidade.
Surpresa e curiosidade, sim, mas admiração também – ao menos de minha parte. Quantos executivos teriam a coragem de promover uma guinada em uma empresa tradicional e bem-sucedida, sem a pressão de maus resultados a fazê-los procurar por alternativas, e tão somente a própria consciência? Quantos se imporiam voluntariamente o desafio de convencer funcionários, fornecedores e parceiros de negócios de que, agora, "valores mais altos se alevantam" e tornam menos relevantes os da última linha do balancete? Os princípios assumidos pela Mercur exigiram, e ainda devem exigir, suponho, uma mudança na cultura organizacional – e, esta, sabemos, nunca é trivial.
Ao tratarmos de casos do mundo dos negócios, referimo-nos a "empresas" e "organizações" como se fossem autômatos, sem consciência ou emoções. Se é bem verdade que a mentalidade business as usual contribui muito com essa caracterização, exemplo como o da Mercur nos lembram que empresas são feitas de pessoas – que refletem, criticam e sentem. E que, justamente por esse motivo, vez ou outra ousam romper os padrões consagrados e apostar em caminhos menos convencionais. "Somos obesos de informação e famintos de sentido", disse certa vez o economista Eduardo Giannetti, referindo-se à sociedade contemporânea na era da comunicação instantânea. Empresas também podem manifestar sensação parecida: sentirem-se fartas de resultados e carentes de significado – até que decidam mudar.
Versão reduzida de coluna publicada na edição impressa de AMANHÃ (número 334)
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