Sobre outras rodas

Daqui a alguns anos, quando você rememorar as grandes transformações culturais as quais assistiu, não se esquecerá de incluir um fenômeno que vem ganhando forma há menos de uma década, mas que deverá pautar os próximos tempos: a estigmatização do aut...

Daqui a alguns anos, quando você rememorar as grandes transformações culturais as quais assistiu, não se esquecerá de incluir um fenômeno que vem ganhando forma há menos de uma década, mas que deverá pautar os próximos tempos: a estigmatização do automóvel. Trata-se do zeitgeist, “o espírito do tempo”, passando bem aí, na frente da sua janela. 

Se o pós-Guerra foi o marco da cultura de adoração aos carros, pelo que representavam de autonomia e individualidade, os tempos hiperconectados e ecologicamente corretos de hoje sugerem o início de seu declínio. No Japão, na Europa e nos Estados Unidos, montadoras esgoelam-se para chamar a atenção dos jovens consumidores, alheios à sedução das quatro rodas e mais interessados em gadgets eletrônicos, aplicativos e que tais. Para a geração digital do primeiro mundo, automóveis representam mais um transtorno, pelos custos e manutenção que exigem, do que um passaporte para a liberdade. Não por acaso foi por lá que começou o ciclo-ativismo, e é lá que os serviços de compartilhamento de veículos crescem promissoramente: carros deixaram de ser cool para eles. 

Por aqui, ouvem-se discursos semelhantes. Multiplicam-se depoimentos de gente que desistiu de usar o automóvel no dia a dia, adotou a bicicleta ou que, mesmo utilizando-o, se esmera em imprecar contra o transporte individual. Ainda que concentrados em parte das classes média e alta, esses discursos são suficientemente fortes no imaginário coletivo a ponto de pautarem a campanha publicitária de um...automóvel. O Punto (foto), da Fiat, em comercial veiculado no início deste ano, definia-se como “um carro inovador para quem tem muita personalidade, até para deixá-lo na garagem quando dá para usar a bicicleta”.  

Deste provável ocaso automotor, três lições de marketing se extraem. 

Primeiro, a importância de sentir para onde os ventos sopram. Em um país como o Brasil, ficar de olho no primeiro mundo é sempre uma forma de se prevenir de surpresas que possam virar de cabeça para baixo o setor em que se está, ou de antever oportunidades inimagináveis quando a atenção está voltada apenas ao próprio quintal. 

Segundo: nas sociedades, existem ideais culturais e realidades culturais. O uso de transportes alternativos se encaixa no primeiro caso, especialmente entre as classes com pretensões cosmopolitas; a imposição prática do uso intensivo do carro, no segundo. A publicidade deve saber lidar com ambos, como bem fez a Fiat. Oferecer um automóvel a quem jura preferir usar a bicicleta é um truque inteligente para aliviar consciências culpadas.

Terceiro e último: as empresas devem definir seus negócios de maneira ampla, sempre em relação à necessidade que atendem ou ao benefício que entregam ao consumidor, e nunca a um produto, serviço ou tecnologia específicos. O negócio das montadoras jamais foi o automóvel, e sim o transporte, a mobilidade humana. Por isso, várias dessas companhias já estudam ingresso no negócio das bicicletas elétricas, prevendo que a era dos carros particulares não será eterna. Para elas, o futuro até chegará sobre rodas – mas não as quatro do automóvel.

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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