A verdade inconveniente
Ninguém escolhe o papel histórico que lhe caberá, nem a forma como será lembrado. Pois aos "acionistas de referência" das Lojas Americanas, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, bem como ao "mercado", essa entidade etérea constituída por bancos, corretoras, analistas e auditores, resta a esperança de ficar para a posteridade como um bando de parvos – pois a hipótese alternativa é pior e dá cadeia.
As fraudes contábeis nas Americanas envolviam pelo menos 60 pessoas e vigoravam desde 2007, segundo Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF). Inevitável perguntar como improbidade de tal magnitude foi mantida em "segredo" por década e meia contando com tamanho número de cúmplices – e mantida a salvo do olhar supostamente vigilante de sócios e analistas. Por enquanto, contudo, as atenções parecem se concentrar sobre os operadores diretos do esquema, executivos da companhia que, querem nos fazer crer, atuavam por conta própria e com discrição invejável.
Cautelas bem-vindas da investigação e da cobertura jornalística? Talvez. Ou mero temor reverencial diante de duas vacas sagradas do capitalismo local.
A primeira é o trio Lemann, Telles & Sicupira, inspirador dos ideais da meritocracia, da ambição e da eficiência à brasileira. Tido, primeiro, como exemplo de enriquecimento pessoal e, depois, como portador de um ethos desejável a todo país viciado no paternalismo improdutivo, seu papel no imaginário do liberalismo local é por demais conhecido.
A segunda é o "mercado". Sempre sensível à fala de ministros e presidentes, atento até às vírgulas das atas do Copom, ao Custo Brasil e a tudo que freie suas boníssimas intenções, teve quase 20 anos para desconfiar de um escândalo de proporções épicas numa das maiores empresas do país, mas nada viu ou fingiu não ver. Quem sabe porque as mãos que adulteravam os números das Americanas fossem como as suas, invisíveis.
O antropólogo Roberto da Matta já escreveu que "há símbolos no capitalismo tanto quanto há (...) entre os índios do Amazonas, os nativos da Polinésia e os negros da África Equatorial". Há mitos também. Costumamos imaginá-los sob a forma de logomarcas e produtos nas prateleiras, quando frequentemente são menos tangíveis: o de quem se esforça, prospera; o de quem gera valor, enriquece; e de que o mercado é o melhor dos nossos consensos, senão o único. Colocá-los na berlinda por um crime como o das Americanas ameaça revelar uma construção histórica e ideológica. Constitui uma verdade inconveniente.
Daí que o melhor seja isentar todos esses envolvidos pretensamente distantes, oferecendo-lhes o benefício da dúvida e a alternativa pouco lisonjeira de que, tal qual como qualquer um de nós, humanos, erram e são enganados.
A outra, convenhamos, seria mais difícil de defender.
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