Um fundo de verdade
Foi uma das marcas da pandemia. Famosos e anônimos entrevistados pela internet exibiam-se diante de prateleiras repletas de livros, sugerindo erudição. O que começou como algo quase acidental tornou-se motivo de brincadeira: tenha sua própria estante fake para transmissões ao vivo ou peça para alguém exibir seu leitor digital enquanto você fala. Provando que o fenômeno não era apenas brasileiro, houve quem se prestasse a uma investigação sobre as preferências literárias dos que apareciam na tela, em uma pretensa "janela para suas almas" (aqui, em inglês).
Bem, existe um fundo de verdade (sem trocadilho) nessa repercussão toda. O ser humano vive de suas afirmações de identidade. Ou seja, dos elementos que faz questão de mostrar para os demais, uma vez que ajudam a construir a versão idealizada de si mesmo. Boa parte desses elementos está no Facebook, sob a forma de fotos de famílias perfeitas e viagens ao redor do mundo. Mas outra parte fica restrita a espaços privados, como casas e escritórios. Porta-retratos, quadros, livros, esculturas, objetos de decoração – tudo aquilo que numa postagem de rede social ficaria estranho é revelado quando se invade, ainda que de maneira rápida e limitada, a intimidade de alguém.
Foi o que ocorreu durante a pandemia. Todos aqueles que teriam se deslocado para um estúdio de televisão viram-se obrigados a escolher um ambiente doméstico para ser entrevistados. Daí para preocupar-se com o cenário foi um pulo: era a imagem pessoal que estava em jogo ao se revelar um fragmento da vida privada. O caso das bibliotecas pessoais destaca-se porque afirmações de identidade na área cultural são especialmente importantes. "O consumo cultural é uma forma bastante esclarecedora sobre quem somos ou pretendemos ser", lembra o professor Clóvis de Barros Filho.
O oposto das afirmações de identidade são os resíduos comportamentais. Aquilo que inadvertidamente revelamos a nosso respeito e que nem sempre é muito abonador, ao menos socialmente. Se no meio da biblioteca flagra-se um Kama Sutra ou um "Como enriquecer em 5 dias", por exemplo, o intelectual perde pontos entre os telespectadores. Nas redes sociais, esses resíduos aparecem sob a forma de rastros involuntários, como erros de português. E em outras situações, como explosões de raiva ou conversas privadas, surgem encarnados em palavrões, preconceitos e fraquezas de caráter.
Quando escreveu "A sociedade do espetáculo", em meados dos anos 1960, Guy Debord não poderia prever as redes sociais nem as entrevistas pela internet. Mas uma parte da lógica que permeia ambos os fenômenos já estava descrita ali: zelar pela própria imagem é prioridade das sociedades urbanas e midiatizadas. E tanto à época quanto agora, parecer é tão importante quanto ser, como se vivêssemos todos em uma grande representação – que, agora, encontra na biblioteca pessoal seu cenário perfeito.
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