Sobre delatores e delatados

Quando a chamada Revolução Cultural varreu a China e levou à rua a roupa suja que seria lavada nos comissariados de polícia, o contexto da época – quase 50 anos trás – por certo não permitiu que as sentenças de reeducação e as incriminações que se fa...

Quando a chamada Revolução Cultural varreu a China e levou à rua a roupa suja que seria lavada nos comissariados de polícia, o contexto da época – quase 50 anos trás – por certo não permitiu que as sentenças de reeducação e as incriminações que se faziam aos "inimigos do povo" fossem televisionadas. Na falta do recurso tecnológico, eram afixadas nos jornais murais (dazibao), o que privava (ou poupava) o cidadão comum de acompanhar ao vivo o espetáculo de execração que se passava nas saletas do tribunal ou, em alguns casos, em plena rua. Ao cabo desses processos, era comum que os contra-revolucionários desfilassem em jaulas ou envergassem longos chapéus em cone em que se lia "burro", "traidor" e afins. Dali, a próxima etapa era se dedicar a um campo de batatas onde passariam por ressocialização. Outra vertente do mesmo fenômeno, aqui mais branda no formato, seria a da Stasi alemã que fazia o trabalho às escondidas, num contexto lúgubre em que a publicidade não convinha porque exporia sua rede de informantes e espiões.  

Já no Brasil, vive-se outra história, ajudada pela conjunção da excelência de alguns fatores pouco triviais. São eles o televisionamento das delações, feito com todo o requinte de um país em que sobram editores de imagem e som, já que somos a pátria das novelas e do suspense. Basta ver o clima de expectativa que sabe criar o Jornal Nacional. Em segundo lugar, temos a riqueza de um script surreal que estarreceria até as mais juramentadas cleptocracias, pois nelas não se vê todo dia pessoas de preparo intelectual e traquejo social exporem suas vísceras em atos de contrição. Em terceiro lugar, as conversas se dão em ambientes de temperatura e pressão que propiciem um clima de conversa, o que leva não raro os delatores a driblar o nervosismo e o constrangimento para se entregar por inteiro a uma sessão de terapia, como talvez nunca tenham tido. É claro que a criação dessa atmosfera quase amigável consegue tornar o evento tão convivial que é comum que risos se transformem em risadas e estas em gargalhadas. Especialmente da parte dos depoentes.  

Quem haverá de esquecer a atitude insólita, quase bonachona, de Emílio Odebrecht ao fazer alusões ao apetite de seus comensais-despachantes? Tenho certeza de que a metáfora do jacaré guinado a crocodilo fará parte doravante do rico coloquialismo brasileiro. Foi nesse diapasão que o entrevistador se deu conta de que o clima de conversa de bar estava ferindo os cânones da compostura e puxou um freio de arrumação. Já pensou se ele próprio se visse contagiado pelo "fou rire" do interlocutor? Mais importante do que as considerações sobre o fato de Lula ser ou não o "bon vivant" que apontava Golbery, é perceber o quão essas conversas se dão em diapasão de naturalidade. Ora, ela perfura camadas íntimas da cognição nacional, como já venho dizendo desde a Era Collor. Boa parte dos corrompidos e corruptores não se dá conta de estar perpetrando um ilícito. Em nome da sobrevivência política, toda arma passa a ser válida. No nosso caso, os próceres do submundo "usam black tie", são quase agradáveis, e não sei ainda como advogados bem pagos não levantaram a tese de que são inimputáveis. 

Num contexto em que todo o acima se confundirá doravante com nossa imagem de marca mundial, há de se enfatizar que é só um reforço. Em décadas de viagens pelo mundo, sempre ouvi as pessoas falarem do Brasil como se fosse um paraíso de licenciosidade. Como se efetivamente "não existisse pecado do lado de baixo do Equador". Ladrões tidos como românticos como o velho Ronald Biggs, o assaltante de trem pagador, encontraram no Rio de Janeiro um porto seguro. Lá Ron abriu restaurante, cobrava pelas entrevistas à imprensa britânica, constituiu família e foi adotado pela alma generosa brasileira. Até criminosos de sangue como Cesare Battista, o italiano que matou a queima-roupa um joalheiro, conseguiu se esconder por aqui e levar vida airosa. Daí não ser incomum que nos filmes, às vésperas de um grande golpe, quando os delinquentes elaboram cenários idílicos onde viverão em caso de sucesso, este é quase sempre o Brasil. Parece mais que é um karma. No caso recente tudo começou de forma, fortuita, quase acidental. Quem não se lembra do funcionário do correio recebendo um pacotinho de R$ 3 mil?

Por essa e por outras, cada dia entendo mais uma querida amiga de São Paulo que deixou de lado a psiquiatria de consultório por uns anos e resolveu se reinventar nas estradas da África, abraçando causas nos confins da Terra junto aos realmente necessitados. Segundo me disse quando a decisão ainda estava tomando forma, era cada vez mais torturante ter de acolher pacientes jovens, muitas vezes de excelente formação, às voltas com dúvidas de cunho deontológico e existencial. Ora, recrutados por grandes empreiteiras brasileiras e muito bem pagos, eis que se viam enredados num espécie de MBA interno em que se davam rudimentos de como cativar políticos, apresentar emendas ao orçamento via parlamentares e criar aquele clima de que falou Emílio Odebrecht em que as respostas a pedidos devem ser sempre "sim", desde que o demandante esteja à altura de dar as contrapartidas esperadas. Exaurida de receber um número crescente de pacientes com esse perfil, ela optou por fechar as portas e partir para a África subsaariana onde a luta por um balde de água fresca é de regra.

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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