Os seios da discórdia
Excepcionalmente, não dormi bem no longo voo que me trouxe de Guarulhos a Zurique na noite passada. Apesar de o Boeing 777 ser um equipamento impecável, e de não pairar quaisquer dúvidas sobre a excelência da tripulação da Swiss, meu estado de espírito talvez não fosse dos melhores. Incomodado pelo brilho ofuscante das telas de cristal líquido, não larguei os jornais e só fui dormir quando já tínhamos atravessado o Atlântico e já sobrevoávamos a pontinha do continente africano, o que faz com que esteja cansado nesta bela cidade suíça onde cheguei há pouco.
Debulhando o noticiário medíocre que ainda dá giros em torno da execução do Hino Nacional em escolas, e de uma esquisitíssima filmagem de crianças em tom de exaltação – o que dispensa qualquer comentário –, a indigência da pauta pré-carnavalesca ficou por conta dos peitos de uma atriz que desfilou num bloco de São Paulo com eles à mostra. O nome dela é Maria Casadevall e, se já tinha alguma fama antes do episódio, o que desconheço, agora reuniu o que faltava para galgar os degraus da consagração. Ou da execração, vai de quem julga.
Aspergidos de purpurina, confesso que os seios de Maria se assemelham a dezenas de milhões de pares mundo afora. Nem grandes nem pequenos, nem turbinados de silicone nem ainda sujeitos às crueldades da Lei da Gravidade, tudo passaria despercebido, não tivessem seus amigos rabiscado de batom seis letrinhas em duas palavras que, segunda o intenção, positivam uma posição política. "Ele não" – sem "hashtag" – quer significar uma reprovação ao presidente Bolsonaro, ao que soube. Eis, portanto, uma homenagem imerecida a um ex-paraquedista.
Mas ora, não sei se por isso ou não, parece que os peitos da moça dividiram o país, E não é que uns tenham gostado mais do caimento do esquerdo e outros do direito. Não. Os indivíduos ditos progressistas vibraram com o caráter revolucionário do gesto. Dispensar a lingerie para brincar o Carnaval é um ato de rebeldia. Outros detestaram-no porque acharam que era atentatório ao pudor, provocador e, no mínimo, de grande vulgaridade, estivesse ela embriagada ou não. Sinceramente, é de pasmar como essas discussões brasileiras acusam retrocesso.
Digo isso porque tinha eu uns 12 anos, quando a revista Manchete trouxe uma matéria fotográfica de título: "O topless no verão carioca". Na foto central, uma linda morena de cabelos molhados encarava a lente com ar coquete e os seios à mostra nas areias de Ipanema. Não sei se muita gente no Brasil guardou a foto, mas para os 12 anos que eu tinha na época, ela representou um gatilho importante no capítulo das curiosidades e descobertas com que estava para me confrontar dali em diante. Mas ora, isso data já de meio século. E o mundo não caiu, pelo contrário.
De lá para cá, a nudez dos seios já ganhou passarelas no mundo inteiro e basta uma caminhada pela Foz do Porto, no ainda conservador Portugal, para que vejamos centenas de pares a tremeluzir como quindins sob o sol do verão, sem que ninguém pare para fazer caso disso. O mesmo vale para países africanos e orientais, muito embora a prática seja mais cara às brancas e índias. O que é o inconcebível é que estejamos regredindo a discussões bizantinas tais como esta, em torno da qual se estabelece uma polêmica respeitável e, por que não dizer, indigente.
Numa dessa, a única a estar dando belas risadas é a própria Maria Casadevall – adoro a sonoridade do nome, que é única, mais do que os seios que são o que podem ser – que vai cobrar um gordo cachê para promover uma marca de sutiã. E quando o cheque for assinado pelo patrocinador, ela dirá com alegria: "Ele sim". Ao passo que o país chafurda na tentação rasa dos não-assuntos e das pequenas pautas. Todas, invariavelmente, com um viés mofado e cheiro a naftalina. Nessa pisada, na falta de melhor identidade, ainda poderemos virar uma teocracia.
Que Deus nos livre!
Veja mais notícias sobre Brasil.
Comentários: